Fotogramas | Aquarius

Nos primeiros sessenta minutos de Aquarius, o roteiro passeia sobre a vida da protagonista Clara, passado e presente, e sobre a pressão que ela sofre para vender o apartamento. Acompanhamos sua resistência e teimosia, mas ainda não sabemos ao certo pelo o que ela resiste com tanta força. É na cena do diálogo com os filhos que o roteiro descobre o motivo da resistência de Clara, que não está no valor financeiro do apartamento, mas no valor emocional, o que está ligado à memória e ao afeto.

A cena abre com a nora de Clara, trocando as fraldas do bebê e, em seguida, a filha Ana Paula reinicia a conversa desconfortável iniciada na cozinha, ainda com o intuito de tentar mudar o pensamento da mãe que não aceita vender o apartamento nem quando o valor em dinheiro se mostra bem robusto. A sala iluminada pela luz solar, no que parece ser uma tarde de domingo. Brinquedos, discos, livros e taças de vinho, desenham a estrutura da visita de filhos já crescidos no lar da matriarca. Em certo momento da conversa, Ana Paula usa o termo “esse apartamento”, e o que se segue é um diálogo extremamente verossímil e transformador na obra de Kleber Mendonça Filho.

Aquarius

“Esse apartamento”, não é apenas uma estrutura física e imponente na praia de Boa Viagem, mas a construção atemporal das memórias de Clara e de tudo o que esteve lá antes dela. Ali, lugar onde os filhos cresceram, nascente de valores morais e culturais. Para Clara, isso tem muito mais valor que o dinheiro, indo contra as opiniões da filha que é insensível e não entende onde mora o valor da afetividade.

Quando Clara diz que o apartamento é na praia de Boa Viagem, ela não quer dizer que ele se localiza num lugar privilegiado no aspecto de poder aquisitivo, mas no privilégio que é morar próximo ao mar, à natureza, a calmaria dos pés descalços na areia, o mergulho revitalizante. Cada palavra desvenda o motivo da luta.

Resistente também, mas no sentido oposto, Ana Paula procura atingir a mãe quando toca na questão profissional, desdenhando o ofício de escritora e jornalista. Aqui, novamente uma quebra de expectativas, quando Clara demonstra mais uma vez que despreza padrões. Ela não se coloca na posição de uma senhora de setenta anos, convalescente com a filha, que se sente magoada, mas acata para não escorregar na curva do imaculado papel materno, muito pelo contrário. Clara cita Paulinho da Viola e Lupicínio Rodrigues, chama a filha de insensível, de idiota, se revolta sem perder a delicadeza. Então, quando se pensa que o debate acalmou, Ana Paula segue se mostrando fria quanto aos sentimentos da mãe e ataca o aspecto materno quando diz que, em função do trabalho, Clara foi negligente em relação aos cuidados com os filhos.

A cena segue com a reconciliação entre mãe e filha, onde o que causa o arrependimento é o próprio livro que Ana Paula critica. Ali se vê que ela tem um pouco da mãe, mesmo que o lado insensível fale mais forte. A cena se encaminha para o fechamento de uma forma muito doce, quando a filha diz que a mãe é uma mistura de velinha com criança. O termo criado por Ana Paula define boa parte da personalidade de Clara, que já passou pelos perrengues da vida, mas não perde a doçura e o encantamento com as coisas intangíveis. Não é toa que quando Clara afirma que é mesmo uma mistura de velinha com criança, está posicionada justamente entre um velho piano, discos de vinil e uma mamadeira.

Essa cena, que dura aproximadamente cinco minutos, é um divisor de águas no roteiro e na compreensão para com a história e para com o olhar crítico de Clara perante as injustiças da sociedade e a insensibilidade de quem olha o prédio e não enxerga os vínculos humanos criados em torno dele; e é no confronto com os filhos, sobretudo com a filha, que ela não se cala diante dos valores invertidos e demonstra no diálogo o valor de sua luta.

Gostou? Siga e compartilhe!

Elaine Timm

Elaine é gaúcha, formada em Jornalismo, atua como social media e curte freelas. Blogueira de várzea, arrisca escritas diversas. Cinéfila, amante dos livros, musical e nerd desde criança, quer ser Jedi, mas ainda é Padawan. Save Ferris.

timm-elaine has 52 posts and counting.See all posts by timm-elaine

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *