Bang Bang | Rastros de Ódio
Texto por: Ítalo Passos e Jonatas Rueda.
O faroeste é uma das pilastras do cinema estadunidense e, por muitas décadas, foi o gênero mais popular que gerou filmes tão influentes que certos elementos podem ser vistos até os dias de hoje. E John Ford com Rastros de Ódio, sem dúvida, está nessa lista de relevância. Conhecido e prestigiado (é o único a ter 4 estatuetas de melhor direção), o norte-americano é um dos diretores imprescindíveis da indústria, tendo sido ativamente participativo nos momentos em que o país vivia uma guerra.
O filme faz questionamentos sociopolíticos indispensáveis, nos convidando a refletir sobre seus temas após seu término e que nos revela possuir uma importância não só para o gênero em si, mas também dentro do contexto narrativo do cinema.
A sinopse é relativamente simples: Ethan Edwards (John Wayne), um veterano da Guerra Civil, chega ao estado de Texas em 1868 e encontra o seu irmão e sua família. Entretanto, no dia seguinte, comanches invadem o rancho e matam seu irmão e sua esposa Martha (Dorothy Jordan).
Além disso, raptam as duas filhas do casal. Então, o protagonista, parte em uma busca vingativa pelas meninas junto com o companheiro Martin (Jeffrey Hunter), um mestiço que logo percebe que Ethan está obcecado em matar os índios e repleto de um ódio inerentemente racista.
O fato do protagonista ter esse preconceito e maltratar em todo momento seu companheiro afasta o espectador ideologicamente do mesmo – assim, se apaga a primeira barreira convencional do gênero, uma vez que existia uma delimitação muito clara entre mocinho e bandido, tornando complexa a relação do protagonista com o público.
Contudo, Ford é hábil ao nos fazer compreender que aquele indivíduo teve uma vida castigada e sem muitas escolhas, sendo assim, é mais que natural que seja tão agressivo, frio (não demonstra qualquer tipo de emoção nem com a morte de seu irmão) e frequentemente sarcástico, evidenciado pela marcante frase “That’ll be the day” (tradução livre: “Vai chegar o dia”).
O racismo/ódio é o fundamental tema da obra e talvez seja por isso que se tornou atemporal. Martin Scorsese, anos atrás, analisou de forma precisa a cena em que discutem sobre o corpo morto de um índio: o protagonista é tão cruel que atira nos dois olhos para que o mesmo não atinja o paraíso de sua cultura, consequentemente, vagando pela eternidade como também tenta aniquilar todos os bisões para que não seja possível a alimentação da tribo indígena. Um sentimento de ódio tão intenso que vai além do túmulo.
O personagem vivido por John Wayne é claramente uma pessoa quebrada e que sempre tenta controlar seu destino, mas que gradualmente apresenta camadas importantes para sua evolução como na cena em que presencia a destruição da fazenda pelos indígenas.
Ao notar a desgraça ocorrida (e sua comoção pelo que acaba de ver é precisamente escondida pelas sombras do recinto), usa da violência para que Martin não sofra ao ver o corpo de Martha. O diretor é inteligente ao decidir não expor os corpos das vítimas, fazendo com que o próprio horror da destruição seja subjetivo aos olhos da plateia.
A trilha sonora (composta pelo lendário Max Steiner) remete muito ao heroísmo dos cowboys americanos, tornando as cenas de tiroteios (e se diferencia do faroeste comum por serem poucas) intensamente emblemáticas, humanizando ainda mais toda a odisseia de Ethan e seu companheiro.
É sintomático reparar que após ser baleado, não o vemos ressurgir rancoroso e furioso, mas sim reflexivo sobre toda a situação (já que sua jornada dura anos) que está inserido. É mais importante salvar a vida de sua sobrinha (interpretada pela talentosa Natalie Wood) ou matar todos daquela cultura, incluindo seu próprio sangue pelo simples fato de ter absorvido toda aquela tradição por meio do convívio?
Esporadicamente possuindo um tom cômico, a obra é sutil no que condiz com a passagem do tempo, já que apesar de breves menções dos anos, lentamente o semblante cansado do anti-herói surge na tela como um recado, principalmente exposto pela barba “por fazer” e os fios brancos do cabelo.
Uma das qualidades mais poderosas de Rastros de Ódio é seu apuro visual que conta com uma fotografia deslumbrante que unida com a mise-en-scène impecável de John Ford (apesar dos econômicos movimentos da câmera, testemunhamos algo que parece ter vida própria pelos ângulos, enquadramentos e a rica movimentação dos personagens, não sendo à toa que o diretor fosse conhecido como um autor que parecia praticamente pintar com seus icônicos frames) se torna num western à frente de seu tempo justamente por enriquecer e complexar a linha moral e ética do suposto mocinho da trama.
E não é possível comentar sobre a fotografia do filme sem mencionar o plano inicial e final (provavelmente uma das imagens mais icônicas não só da década como a história da sétima arte), onde somos convidados, de forma imagética, a adentrar naquele mundo laranja e seco com o abrir das portas e deliberadamente a sair com o cerrar das mesmas, deixando o protagonista tragicamente condenado a vagar (e o fato de estar de costas é simbólico) naquele mundo desesperançoso e caótico — e tais cenas podem ser compreendidas como um flerte com o viés teatral, uma vez que as portas são uma alusão às cortinas que representam início e fim.
A revista The Sight & Sound (considerada a mais relevante da indústria), a cada década, reúne críticos e diretores para elegerem os melhores filmes de todos os tempos. A obra-prima de Ford foi mencionada diversas vezes e atualmente ocupa a sétima posição da lista realizada em 2012. Precisa dizer mais alguma coisa?
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Nome Original: The Searchers
Ano: 1956
Direção: John Ford
Roteiro: Frank S. Nugent
Elenco: John Wayne, Jeffrey Hunter, Vera Miles, Ward Bond, Natalie Wood, John Qualen, Olive Carey, Henry Brandon, Ken Curtis, Harry Carey Jr., Pippa Scott, Lana Wood
Fotografia: Winton C. Hoch
Montagem: Jack Murray