Horroscópio | Lua de Mel de Assassinos

Tido como o filme americano favorito de François Truffaut, esta obra baseada no processo Lonely Hearts Killers, famoso caso midiático na década de 40, ainda é um atual estudo que desconstrói os paradigmas do American Way of Life dos EUA. A trajetória de Martha Beck e Raymond Fernandes, ficou conhecida, durante anos, como um típico caso semelhante ao de Bonnie e Clyde: amantes que compartilham do instinto criminal. Tão perturbador quanto, o filme investe na interação entre as duas figuras humanas reais, no intuito de desconstruir, um pouco, os motivos que levaram o casal à condenação e execução penal no começo da década de 1950.

Dirigido por Leonard Kastle (que assina o roteiro também), Lua de Mel de Assassinos mostra a então pacata vida de Martha Beck (uma Shirley Stoler firme em cena), enfermeira-chefe, na condição de obesa mórbida e sem muitas possibilidades numa vida tediosa. Desperta para o prazer ao conhecer, através do “Clube da Amizade da Tia Carrie”, o galante Raymond Fernandes (curioso como Tony Lo Bianco mantém o arquétipo de um galã de cinema americano, o porte físico tão padrão daquele tempo). Duas aparentes pessoas normais, logo são delineadas para o caminho criminal; justamente essas situações que o filme prefere articular.

Quase como um olhar documental, o roteiro não tem pressa em promover o processo destrutivo e emocional do casal que passa a agir como assassinos. Sob uma fotografia monocromática, que encena belos takes, com jogos de câmera que favorecem contrastes de luzes e sombras, quase numa transparência de estilo noir, a fita incute o senso do medo no público. Desde o princípio, percebe-se que há uma disfunção emocional e uma relação perigosa entre os dois. A fragilidade de Martha logo se contrapõe ao machismo de Raymond, enquanto o roteiro se preocupa em demonstrar que, por trás de tais máscaras sociais, há pessoas obscuras e dispostas a se enveredarem por caminhos sem volta.

A direção cria uma situação de aproximação, tanto que nos primeiros quarenta minutos – sem muitas sequências de tensão ou crimes — compreende-se, primeiro, a relação do casal para, só depois, firmar o palco de horror. Quando Martha descobre que Raymond aplica golpes em mulheres ricas e solitárias, o público passa a notar que existe a falta de moralidade dentro do cenário doentio daquela relação. O roteiro, então, contenta-se em observar a forma como este casal atraía duas vítimas, recrutava e seduzia, para matar posteriormente. A primeira vítima que é apresentada, por exemplo, revela o cuidado da direção que expõe o casal de assassinos, na interação com a potencial vítima, no jogo de sedução e malícia, ambientando-se de diálogos entre Martha, que parece se incomodar com o interesse sexual de Raymond com a vítima potencial — numa posição clara de ambivalência, já que Martha nutre atração pelo parceiro, mesmo sabendo de suas reais índoles, mas aceita a condição moral para manter o homem ao seu lado. Seria, por tal, um caso de submissão feminina?

No segundo ato, a inquietude comportamental: após ficar clara a atitude cruel e imoral do casal — ainda que o roteiro não julgue os atos nas flexões dos diálogos, mas, coloque as situações com certa frieza narrativa —, vemos um tom de tensão se formar dentro do cenário intimista. A partir do momento em que Martha e Raymond passam a seduzir e captar mais mulheres para usurpar-se das suas condições financeiras, fica nítido que a intenção é assassinar, sempre, para despistar quaisquer vestígios criminais. A fita reveste-se de thriller, assumindo um tom voltado ao psicológico. Pouco se vê sangue, mas as cenas de assassinatos revelam o apreço pela tensão, somada à trilha sonora de acordes instrumentais que elevam a sensação de “nervoso”. Grande parte do sinistro que o espectador confere na tela vem das atuações de Stoler e Lo Bianco, astros que exibem a fragmentação do perverso — um ser humano disposto a matar alguém sem qualquer indício de arrependimento. Inevitável perceber que temos um estudo sobre a natureza da índole ou da maldade.

Há uma sequência muito bem colocada neste aspecto: a câmera segue Martha, que desce as escadas, segura as mãos de uma garota (a filha de uma das mulheres que acabara de aniquilar com um tiro certeiro de Raymond em sua face), acompanhada sob o olho sério de seu parceiro. É quando vemos, no take sem corte, a assassina que leva a criança indefesa para o porão da casa. A porta se fecha, a câmera volta-se para a expressão de Raymond, que foca os olhos na direção da porta. Assim, ouvimos os sons dos passos de Martha, que desce as escadas, para, posteriormente, um grito sucumbir no silêncio da cena. É o cenário dramático perfeito de construção de um filme de tensão, em que nada vemos, mas percebemos. E o intuito fica claro: ali existe a frieza da aniquilação humana, através da frieza de dois psicopatas em cena. Um filme que assusta e promove a reflexão através do mórbido.

Nota: ★★★★✰

 

Ficha técnica

Lua de Mel de Assassinos (The Honeymoon Killers)

Ano: 1970

Direção: Leonard Kastle

Roteiro: Leonard Kastle

Elenco: Shirley Stoler, Tony Lo Bianco, Marilyn Chris, Doris Roberts

Trilha sonora: Gustav Mahler

Fotografia: Oliver Wood

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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