Fotogramas | A Lista de Schindler
Cineastas adoram símbolos. Eles transmitem novas noções e contribuem com um visual interessante para a narrativa. Às vezes, podem ser usadas em um filme como o “refrão” na poesia ou na música — para expor o tema central. Muitas vezes, traduzem conceitos abstratos de forma mais poderosa do que a tradicional troca de diálogos. No monocromático A Lista de Schindler, há apenas três momentos com detalhes em cor. O diretor Steven Spielberg optou pela ausência de cores, pois entendeu que não faria sentido usar o policromático para falar sobre um período tão sombrio.
Um desses momentos, talvez aquele que esteja entre os mais icônicos da história do cinema, acontece quando Oskar Schindler, cavalgando no alto de uma colina adjacente, acaba por testemunhar um massacre de judeus pelos oficiais nazistas, e percebe uma menina de casaco vermelho que chama sua atenção. Mas por qual razão Spielberg destaca apenas uma criança vestindo vermelho, em um filme preto e branco?
Sabemos que a cena possibilita uma variedade muito grande de interpretações e isso cabe muito no subjetivo de cada um, mas do ponto de vista fílmico — ou referente àquilo que o diretor quis expressar — a cena representa um momento catalisador na narrativa da história. Quando percebe a garotinha caminhando em meio ao caos, o egoísta Oskar Schindler passa por um vislumbre interno. Sua atenção dirigida a essa criança em particular, evoca uma mudança nele e algo ali é compelido a vir em auxílio dos judeus. Essa cor, em um filme puramente preto e branco — por autenticidade e realismo — serve como um símbolo profundo.
Em segundo lugar, podemos sentir a cena como uma poderosa ferramenta para individualizar o horror. Há um ditado, atribuído a Josef Stalin, que diz que “Uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”. É por isso que é relativamente fácil não fazer nada em relação à tragédias em massa até que nossa atenção possa se concentrar na história de uma pessoa. Pense no menino refugiado sírio, morto na praia; na criança catatônica e ensanguentada, resgatada no ataque em Alepo; na famosa foto da garota em chamas de Napalm, durante a guerra do Vietnã. Essas histórias individuais levam as pessoas à compaixão e, esperamos, à ação.
Na cena da menina de casaco vermelho, nos concentramos em uma vida, mas multiplique essa menina por duas, essas duas por quatro, essas quatro por dezesseis, e você poderá sentir o peso do acontecimento. Spielberg quer nos mostrar uma gota no oceano de perdas, para entender exatamente a dimensão humana dos seis milhões de judeus mortos. Essa ideia do diretor se confirma quando, em um segundo momento, a garotinha volta a aparecer, novamente destacada em vermelho, mas dessa vez sem vida, amontoada junto a outros cadáveres carbonizados. É um momento chocante. O casaco vermelho é visto na pilha de vítimas mortas, lembrando o espectador sobre a fria verdade de que o Holocausto era uma máquina industrial. Ela era apenas outra vítima — como os seis milhões de judeus, mas, para nós, ela era uma pessoa com uma vida, assim como todas as outras.
Em termos puramente dramáticos, a cena cria um senso de identificação para o público, que agora tem uma história em escala humana da eliminação de uma vida obviamente inocente. Isso cria um ponto de empatia e conexão para o espectador, que é muito mais poderoso e emocionalmente impactante do que as estatísticas de um massacre em massa. Dessa forma, é possível compreender a jornada moral e emocional de Schindler através de uma única história humana.
Podemos atribuir, também, a ideia de que a menina é uma criança com uma visão inocente do mundo. Ela não compreende o sombrio mundo monocromático no qual se encontra, mas quando entra sem ser vista em um dos prédios do gueto e se esconde debaixo da cama, é possível notar que o casaco perde a cor. Ali, ela se compreende em uma situação de risco. Quando o colorido se dissipa em preto e branco, ela está perdendo sua inocência e passa a experimentar os horrores da Alemanha nazista. Na teoria da psicologia das cores, o vermelho pode transmitir emoções intensas, compreendendo assim, no contexto da narrativa, a posição da criança como um elemento que representa a violência cometida não apenas com ela, mas para com milhões. Sem sombra de dúvida, ela é inserida como um símbolo, e é fato que se Spielberg a tivesse incluído na cena, sem o uso da cor destacada, teria sido indiferente sua presença ali.
Não é à toa que a cena se encontra entre as mais icônicas da história do cinema. Com apenas o uso de uma cor, no momento adequado, Spielberg consegue transmitir uma gama intensa de emoções, causa empatia no público, implica o envolvimento e marca o momento transformador na história do protagonista, dando sentido a tudo que viria a acontecer. Premiado com sete Oscars, incluindo Melhor Diretor e Melhor Filme, A Lista de Schindler é considerado um dos melhores filmes do século 20, não apenas por suas qualidades fílmicas, mas também pela homenagem atribuída às milhares de vidas ceifadas pela intolerância e ganância humana. A cena analisada é apenas um curto trecho que, sutilmente, potencializa a grandeza da obra.