Apimentário | Paixão Selvagem

No fim da década de 1960, o cantor Serge Gainsbourg já era popular por conta do vício em álcool, cigarros e da constante polêmica em relação a uma vida caracterizada por escândalos sexuais, orgias e casos tórridos com mulheres. Era perceptível sua vulnerabilidade em dois quesitos: a paixão pela música e o vício no sexo feminino. O apelo da mídia em torno de sua figura foi potencializado quando se casou com a então modelo inglesa, Jane Birkin (através desse envolvimento nasceu Charlotte Gainsbourg). Ambos passaram a produzir diversos discos juntos, além da famosa canção erótica Je t’aime, moi non plus — febre que encabeçou o topo de paradas de sucessos em rádios no mundo. A mídia mediava essa relação dos dois e a creditava como símbolo de explosão libidinal.

Durante o período que foram casados, justamente esse apelo carnal era algo que mais os jornais traziam à tona. Jornalistas faziam questão de explorar o lado sensual dos dois, notícias para comprovar um envolvimento de proporção sexual sem precedentes — existia a lenda que Gainsbourg tinha um vício imoderado por sexo e que a compulsão era também um problema para o matrimônio. Paralelo a isso, o ator Joe Dallesandro era considerado o modelo sexual masculino mais proeminente do cinema americano independente; um símbolo fetichista da subcultura gay. Envolveu-se com trabalhos fotográficos de erotismo conceitual e foi muso de Andy Warhol em produções dele.

O soft-porn Paixão Selvagem, uma produção idealizada, musicada e dirigida por Gainsbourg, gerou bastante burburinho no terreno francês pelo formato ousado; um exercício de sexualidade sobre desejos obscuros. A película trouxe Birkin e Dallessandro como personificações da sensualidade hormonal, bem condizente com aquele momento em que essas duas figuras eram símbolos perfeitos da sedução na mídia.

Paixão Selvagem

No filme, Dallessandro é Krassky, um caminhoneiro homossexual que trabalha com seu namorado, Padovan (Hugues Quester), transportando lixo. O que parecia uma relação pacífica e também dotada de tédio, torna-se um senso conflituoso quando Krassky depara-se com uma garçonete andrógina numa beira de estrada, Johnny (Birkin). A aparência um tanto masculinizada, misteriosa e tímida da mulher, faz com que Krassky demonstre certo fascínio e admiração por ela, além do gradual tesão que faz com que seu relacionamento gay gere um “curto-circuito”. O roteiro não tem receios e é objetivo em logo escancarar esse interesse mútuo de um homossexual por uma mulher de corpo esguio, quase sem seios, cabelos curtos e sem contornos femininos.

O filme revela o interesse em diagnosticar a relação promovida de orgasmos — na primeira metade, diálogos que exibem as percepções de cada um, para, posteriormente, promover um exercício mais carnal. Krassky claramente sente desejo por Johhny por conta de sua aparência mais associada à masculinidade. Porém, ao passo que o roteiro tende a criar um envolvimento mais íntimo e emocional entre ambos, como na bela sequência em que os dois dançam e se beijam ao som de Je t’aime, moi non plus, o espectador percebe que ali existe algo que não permanece, apenas, no senso sexual. É possível um envolvimento de afeto além do sexo violento?

O roteiro traça a gradual sedução do casal, desde o contato inicial até a primeira transa, quando fica evidente que Krassky só conseguirá sentir-se excitado com o sexo anal — obviamente, por ser gay ativo, não consegue sentir nenhum desejo pelo corpo feminino, só tendo prazer através dessa prática sexual; tendo, no caso, a fêmea ali despida e entregue a ele de costas. Daí surge boa parte do desconforto que a obra transmite ao espectador, além da polêmica subversiva: a tônica do sexo mais selvagem e até masoquista do casal.

A fita não é um estudo sobre um romance de um homossexual com uma hétero — quem espera um traço profundo de envolvimento mais poético e sensível pode se frustrar. A relação dos personagens é de uma frieza visível, sendo interpretada como selvagem e ríspida. Muitos questionaram, na época, a intenção de Gainsbourg e sua provável falta de tato na maneira como aborda o sexo — mas, o cineasta quis investigar a problemática situação de um envolvimento sexual de duas pessoas tão opostas e de perspectivas divergentes, em busca de orgasmo mútuo.

A dificuldade do homossexual sentir prazer através do sexo com uma mulher, conceito tão abordado já em outros filmes, ganha um contorno mais apelativo, já que o roteiro prefere permanecer na fissura do sexo anal — diversas cenas onde Krassky tenta sodomizar Johnny em motéis precários, num processo doloroso, já que a moça sofre dores diversas e os gritos são constantes, impossibilitando a consumação total e faz com que ambos sejam, constantemente, expulsos dos locais por conta dos “barulhos e gritos” que incitam. E, ironicamente, sentimos que a barreira para o casal viabilizar o amor se condiciona neste aprendizado de coito tão difícil. De fato, é um filme que trata o prazer de maneira mais árdua, cruel e brutal. Talvez por isso, muitos considerassem a obra um tanto doentia. Não há um tom suave, e muito menos delicado, na aproximação desses amantes.

Paixão Selvagem

Com uma premissa tão transgressora e marginal, além de um senso de estética meio “suja” e underground, câmera na mão e cenas onde os atores parecem improvisar — já que os diálogos são fluidos e carregados de uma naturalidade informal —, este filme discute muito bem os traços dos tabus da sexualidade, destrancando um relacionamento com ares de questionamento universal. Há diálogos que beiram à vulgaridade por conta da provocação articulada, mas não é algo que proporcione uma repulsa. Ademais, há ainda espaço para mostrar questões que envolvem a homofobia — o namorado enciumado de Krassky sofre violência física por parte de alguns moradores da localidade — e indagações sobre o papel da submissão feminina, através da representação de Johnny.

Fica visível que ela se submete a uma transa desagradável, a típica demonstração de mulher que aceita servir a um homem egoísta — já que este só quer o sexo dessa forma, sem se preocupar com sua parceira. Mas, no fim, o que fica mais nítido é que não há como sustentar uma relação se o sexo não for tão prazeroso e em sintonia, além de que o sentimento deve ser privilegiado. O filme é objetivo, sem muitos adornos, tanto na concepção fotográfica quanto no aspecto do desenvolvimento narrativo, mas é eficaz no que pretende: colocar uma relação tão rude e desprovida de delicadeza. O sexo aqui é um elemento tão necessário, mas o que deixa rastros para reflexão é como a humanidade ainda sofre pela carência diante de relações, sendo sexuais ou afetivas. Eis uma obra plenamente controversa, ousada e astuta.

Nota: ★★★★✰

Ficha técnica

Paixão Selvagem (Je t’aime moi non plus)

Ano: 1976

Direção: Serge Gainsbourg

Roteiro: Serge Gainsbourg

Elenco: Jane Birkin, Joe Dallesandro, Hugues Quester, Reinhard Kolldehoff.

Trilha sonora: Serge Gainsbourg

Fotografia: Willy Kurant

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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