Horrorscópio | Os Curados
Um filme de zumbis com camadas dramáticas ou um drama com toques de filme de zumbi? O longa, escrito e dirigido por David Freyne, tem sustos, sangue, mas também se sustenta no estudo do comportamento humano. Os Curados traz a questão da aceitação e ressocialização do ponto de vista da comunidade, das famílias e do governo.
Irlanda. Um vírus se espalha transformando pessoas em zumbis. Felizmente, uma cura é encontrada, embora alguns sejam resistentes a ela. Os que conseguem se recuperar, no entanto, não são capazes de se livrar das lembranças de tudo o que fizeram durante o tempo em que estavam infectados. Eles recebem a chance de se reintegrar à sociedade. Alguns, como Senan (Sam Keeley), são reaceitos pelas famílias; outros não têm a mesma sorte. É o caso de Conor (Tom Vaughan-Lawlor), renegado pelo pai.
Sob uma ótica de comunidade, uma parte da população protesta incansavelmente contra a reintegração dos “ex-zumbis”, pois julgam imprevisível o comportamento dessas pessoas. Há relatos de conduta violenta por parte de alguns. Confiança e compreensão são realidades difíceis após um banho de carnificina. Portanto, era de certa forma esperado que, mesmo com a cura, o estigma social permanecesse.
Apesar de não ser tão denso quanto poderia ou tão profundo em sua análise, Os Curados nos propõe a reflexão. Estigmatizar é parte do ímpeto humano. Porém, até que ponto esse comportamento é compreensível (se é que ele é, em algum momento)? Saindo da realidade “apocalíptica” do filme e exercitando o olhar em nossa própria sociedade, quantas vezes, ao longo da história do mundo, essa conduta condenatória não se repetiu? E isso aconteceu em relação aos mais diversos tipos de minorias. Doentes mentais, negros, muçulmanos, homossexuais. Pessoas com doenças de pele, ex-detentos, soropositivos. Enfim, lista é extensa e plural.
O segundo ato do filme é vítima de escolhas duvidosas, tanto de roteiro e, principalmente, de montagem. Ainda assim, a fita consegue ampliar o questionamento em sua esfera política, para os direitos humanos. Em suma, essa é uma questão absurdamente complexa e onde a tendência da generalização mais atrapalha do que ajuda.
Senan conseguiria se transformar em um cidadão pacato e trabalhador, ajudando sua cunhada Abbie (Ellen Page), que perdeu o marido durante a praga, a criar o filho. Por outro lado, a discriminação da sociedade e, em especial, o desprezo do pai, despertam em Connor uma revolta desenfreada. Ali, como em muitas situações da vida real, cada caso é um caso, mas parece impossível que, em larga escala, todos eles sejam analisados separadamente. É exatamente aí que entra o governo, que pretende exterminar todos os infectados que não responderam ao tratamento. A questão, que já é duvidosa por si só, se amplia: será que eles parariam por aí? Ou será que cederiam à pressão social e isso traria consequências também ao reintegrados? Uma guerra se inicia.
O roteiro poderia ter ido mais fundo na ferida, mas é equilibrado por uma direção segura e atuações competentes. Freyne conta com o carisma da atuação pontual de Ellen Page, embora a personagem tenha algumas subtramas mal exploradas. É o caso de seu trabalho como jornalista, que poderia ter sido mais bem integrado à narrativa.
No fim das contas, o longa merece a atenção dos amantes da temática de horror. Mas, suas metáforas são universais e atuais. E a fita vale ser conferida, mesmo por aqueles que não são fãs do gênero. Os Curados é um exemplo desse novo grupo de filmes com “zumbis” que eleva o olhar para questões urgentes.
Nota: ★★★✰✰
Ficha técnica
Título original: The Cured
Ano: 2017
Direção: David Freyne
Roteiro: David Freyne
Elenco: Sam Keelye, Ellen Page, Tom Vaughan-Lawlor, Paula Malcomson, Stuart Graham
Montagem: Chris Gill
Fotografia: Piers McGrail