Miss in Scene | Fernanda Montenegro (Central do Brasil)
A escrevedora de cartas. Há 20 anos, Fernanda Montenegro entrava para a história do cinema como Dora, que de mãos dadas com um menino, andou pelas estradas desse país, numa jornada transformadora. Nunca o Brasil havia sido tão bem representado quanto no longa de Walter Salles, Central do Brasil. E no cerne da história, essa personagem que nos atravessa, que nos comove com sua realidade e volta nossos olhos para o Brasil como, de fato, ele é, sem máscaras.
Lá no meio da estação Central do Brasil, que mais parece o país em escala menor, Dora se sustenta escrevendo cartas para analfabetos; maioria migrantes, buscando no sonho da cidade grande uma vida menos sofrida. Ela é argilosa, joga com a confiança e ignorância das pessoas, e não sente culpa alguma por não colocar as cartas no correio. Ali, naquele mundo, sobrevive o mais esperto. E Dora parece anestesiada pelo torpor causado pelos anos de convivência em meio ao caos urbano. A incapacidade de enxergar o outro, de sentir a dor alheia. Dora segue intocável, um tanto amargurada pela dureza da vida, até que esse menino, Josué (Vinícius de Oliveira), cruza o caminho dela. A partir dali, um tocaria na vida do outro da maneira mais doce que o cinema já foi capaz de entregar.
Fernanda é uma força da natureza. Não há outra coisa que se possa dizer. É toda uma latinidade que materializa uma personagem exatamente da maneira como tinha que ser, ou até melhor. As sutilezas das emoções que formam um caráter humano, tudo construído no formato cênico, camada por camada. A transformação que vai se notando no rosto, no olhar, no corpo da atriz. O mais notável é perceber — e isso é algo tão sutil de se entregar num processo artístico, pois é o desabrochar de uma emoção latente — que a mudança da personagem, ao longo da história, é nitidamente causada pelo menino, pois há ternura no comportamento. No início, Dora é fria, no corpo e na palavra, assim como a metrópole em que vive. No terceiro ato, ela é colo e calor, como no sertão pelo qual fez suas andanças.
Aquele quase Oscar da Fernanda
Vencedora do Urso de Prata, no Festival de Berlim, em 1998 — e de inúmeros prêmios nacionais e internacionais —, Fernanda foi a primeira brasileira da história do Oscar a ser indicada na categoria “Melhor Atriz”. Naquele 21 de março de 1999, a atriz representou o cinema nacional com maestria. Porém, a Academia preferiu premiar Gwyneth Paltrow por seu trabalho em Shakespeare Apaixonado. Essa zebra entraria para a memória cinéfila coletiva como um dos momentos mais injustos da história da premiação.
A importância da presença de uma atriz do calibre de Fernanda, numa produção genuinamente brasileira, é uma forma absoluta de representatividade feminina no cinema. Quando interpretou Dora, ela tinha 67 anos e encarnou uma mulher protagonista, dona da história, brasileira sem caricaturas, que sofre uma catarse e recomeça a vida e os sentimentos, na terceira idade. Assim como Sonia Braga fez em Aquarius, Fernanda entregou uma personagem forte, que eternizou um filme através de sua ousadia cênica.
A mulher presente em uma narrativa que reflete sobre o encontro consigo, através do afeto e empatia. Uma viagem simbólica e representativa, ao mesmo tempo. Simbólica, porque as andanças de Dora e Josué representam uma viagem para dentro deles, do preenchimento naquilo que lhes faltava. Representativa, porque o país do filme é o Brasil escrito, desde o pandemônio da cidade grande — que tem tanta beleza invisível — até o calor das estradas secas, do povo devoto, da simplicidade, nossa essência. Fernanda Montenegro é uma notável Miss in Scene: Dama do teatro, da TV, das Artes, e que levou o nome de nosso cinema para o mundo com sua Dora, com o sublime encontro entre o menino e a escrevedora de cartas.