Miss in Scene | Tully
Tully é a crônica da mulher moderna, que sente que tem que — e acha que pode — dar conta de tudo. Não exatamente por escolha ou por se sentir uma “supermulher”; mas pela expectativa social que lhe é imposta, mesmo que de forma velada. As circunstâncias parecem ir de encontro às necessidades e tornam imprescindível a busca por uma força interior.
Depois de dois longas não tão bem vistos aos olhos da crítica, Jason Reitman volta a trabalhar com a roteirista Diablo Cody, sua parceira em sucessos como Juno e Jovens Adultos. Reitman e Cody são mesmo uma dupla dinâmica: seus filmes funcionam pelo tom intimista, a naturalidade com que a narrativa flui e por tratar da realidade com doses de leveza e emoção bem certeiras.
Em Tully acompanhamos Marlo, que deixou de lado a sua individualidade para cumprir suas obrigações, sobretudo como mãe e esposa. A escolhida para dar vida à personagem principal foi Charlize Theron, que chegou a ganhar mais de 20 kg para o papel. Seu intuito era se aproximar ao máximo daquela mulher. Conseguiu: desenvolveu uma depressão e, segundo a própria atriz, não era a pessoa mais legal para se conviver durante as filmagens.
Com duas crianças pequenas em casa e a terceira a caminho, Marlo parece ter deixado sua persona enquanto mulher em coma profundo. Apesar de amar os filhos e o marido, seu brilho se apagara há tempos. Com a proximidade da chegada de mais um bebê, o irmão dela, o bem-sucedido Craig (Mark Duplass), sugere que o casal faça como ele e a esposa e contrate uma babá para cuidar do recém-nascido durante a noite. Dessa forma, a mamãe poderia descansar e recarregar as energias. Após certa relutância, ela declara: “preciso de ajuda”.
É interessante observar como Drew (Ron Livingston), apesar de ser um marido amoroso e dedicado em diversos aspectos, não enxerga o quanto sua esposa precisa dele. É muito mais cômodo simplesmente achar que tem coisas que só uma mãe pode fazer por um bebê. O que parece não passar pela cabeça dele é que Marlo, muito mais do que de ajuda, carece de cuidados.
A babá, Tully (a ótima Mackenzie Davis), entra em cena, deixando claro para uma Marlo esgotada — e para o público, já compadecido com a situação dela — como o bebê não é o único ser em estado de fragilidade por ali. A ebulição de hormônios, somada à exaustão física e psicológica, tiram qualquer ser humano do eixo. Tully surge como uma lembrança de juventude e vitalidade; o frescor dos vinte e poucos anos que Marlo precisa absorver.
Charlize Theron defende a personagem com tanto afinco e verdade que é difícil não se sensibilizar com o que se passa na tela. Aliás, a performance da protagonista vai muito além de sua transformação física. Theron constrói Marlo nos mínimos detalhes, como é possível perceber em seus olhares e linguagem corporal. A química entre ela e Davis é natural e solidifica a narrativa inteligente de Cody e Reitman. As conversas entre as duas logo assumem um tom de amizade de longa data, de uma forma reconfortante até para o espectador.
Mas, nem só de drama é feito este filme. Como era de se esperar, os diálogos carregam a perspicácia e a acidez comuns aos trabalhos de Diablo Cody. Isso resulta naquela ironia boa e, não raramente, em momentos engraçados e de imediata identificação para o público. É fácil se pegar lembrando de uma situação parecida da vida real ou pensar em algo que poderia ter acontecido com você mesmo. Alguns desses momentos acontecem na escola do filho da proragonista, nas conversas que ela tem com a diretora. Em sua primeira visita, ela está grávida e confusa; na segunda, com um bebê e exausta; na terceira, vemos uma Marlo tranquila, graças ao “efeito Tully”.
Também não se engane quando Tully aparentar ser um filme comum e previsível. O roteiro pode até não parecer tão original para alguns, mas deve funcionar mesmo para aqueles espectadores mais difíceis de serem surpreendidos. Afinal, é um trabalho de Jason Reitman; ele jamais permitiria que você saísse do cinema sem algo para pensar depois. Por mais que tenha te feito sorrir durante a projeção. É assim, com bom-humor, sagacidade e uma dose generosa de sensibilidade que o longa nos convida à reflexão.
Nota: ★★★★☆
Ficha Técnica
Ano: 2018
Direção: Jason Reitman
Roteiro: Diablo Cody
Elenco: Charlize Theron, Mackenzie Davis, Mark Duplass, Ron Livingston, Elaine Tan, Asher Miles Fallica e Lia Frankland
Montagem: Stefan Grube
Fotografia: Eric Steelberg