Brazuca | A Navalha na Carne

 

A câmera segue a mulher que se veste em um quarto de aparência decadente, provavelmente após uma noite de sexo com alguém em um prostíbulo. O espectador nada sabe, mas percebe que naquele ambiente social existe a noção do lado oculto do humano.

Os primeiros vinte minutos de projeção não expõem diálogos, só a narrativa imagética. A direção que perscruta a protagonista, com lentes e posicionamento que exibem a “segunda pessoa”, como um espectador que a observa. Em outro ambiente da ação, temos um jovem que caminha pelo cortiço, no exercício de limpeza do ambiente.

Duas representações: a prostituta Neusa Sueli (Glauce Rocha) e o homossexual Veludo (Emiliano Queiroz) sob a moldura da marginalidade ambientada na região da Lapa, no Rio de Janeiro.

A Navalha na Carne baseia-se na obra de Plínio Marcos (que também assina o roteiro), dirigido por Braz Chediak em 1969. A fita tornou-se, ao longo dos anos, uma exposição sobre a noção do homem como meio do qual está inserido. Um trabalho sobre a sexualidade e a exclusão social.

A trama exibe as perspectivas da dificuldade de vida da prostituta que vive sob as ameaças e opressão do seu cafetão, Valdo (Jece Valadão). O filme nos coloca como espectadores próximos de uma situação de tensão: os monólogos e dilemas de três personagens sob um cortiço fétido, decadente e isolado.

A quase meia hora sem diálogos fora à frente do seu tempo, uma narrativa só com ruídos, captando as expressões dos personagens, a câmera colada nos rostos. O estilo demarcado por Chediak é ousado, mas de acordo com o exercício de seu cinema marginal. A ausência de diálogos e sons refletem a desesperança dos atores em cena. Indivíduos que se entregam ao universo degradante, sem perspectivas, imersos em um estado de solidão.

“Bate nessa face que te viro a outra, como Jesus Cristo”.

A narrativa lida com estereótipos. Os dilemas da prostituta são próximos do homossexual: ambos não conseguem vencer; não há opções de uma vida mais satisfeita, a não ser vender o próprio corpo. A atuação de Glauce Rocha transmite um senso emocional, de acordo com o tom mais sentimental de sua personagem, a mulher vitimada pelo sistema e prostituta por falta de alternativa.

Em sua representação, um estudo sobre a infelicidade de uma mulher oprimida por uma vida sofrida. O semblante triste, o olhar perdido e a angústia que transparecem na composição desta atriz são precisos.

Já a frieza de Emiliano Queiroz nos permite refletir sobre a violência, o homossexual recluso em suas próprias cicatrizes. Percebemos o arquétipo do gay comum, o indivíduo afeminado, de gestos delicados, o típico homem caracterizado pelo cinema: um “homossexual alegre”. Os dois traços, ainda que não soem caricatos, são adoções dos padrões de representatividade.

 Jece Valadão e Glauce Rocha emulam Marlon Brando e Vivien Leigh

“Nunca pensei que você fosse tão miserável!”

Interessante como a fita nos remete às obras de Tennessee Williams, como Uma Rua Chamada Pecado: a semelhança de espaços fechados dentro de um cortiço sujo, enlameado, com paredes em ruínas, tendo personagens em conflitos morais e sexuais entre quatro paredes. Os ambientes cinzentos, fotografados à meia-luz, escondendo as faces dolorosas dos personagens oprimidos pelas condições físicas e emocionais.

Por sua vez, existe uma aproximação entre os personagens masculinos: Jece Valadão exerce o homem que cafetina uma mulher. Machista, de modos grosseiros e falas marcadas que violentam o feminino em cena. Assim como Marlon Brando exercia com seu Stanley Kowalski, um indivíduo rude que dominava Vivien Leigh, como um terror psicológico.

Com uma direção de atmosfera teatral, há um jogo de diálogo e interação dos três personagens dentro de mesmo espaço. Sendo que cada um tem seu momento de se destacar para a câmera, como um ator no palco que tem o holofote direcionado para si, uma espécie de pequenos monólogos.

Espelho quebrado, a penteadeira como símbolo da fragilidade da prostituta

Psicológico através do figurino e direção de arte

Enquanto a prostituta tem um vestido surrado, marcado pelo uso e um tanto desgrenhado, o cafetão permanece com uma calça e o peitoral à mostra, como um macho-alfa deselegante. Já a figura afeminada do homossexual, os cabelos alisados que combinam com a camisa listrada e calça justa.

Tal qual a conturbada vida sem esperança de Neusa, em seu retrato social destroçado e sem oportunidades, o cenário de intimidade também está fragmentado. Quando ela se posta frente a nós, ao fundo visualizamos sua penteadeira totalmente destruída, suja, sem cuidados. O espelho quebrado representa o seu cenário de desestrutura psicológica.

A analogia, rica em símbolos visuais, torna essa película um trabalho rebuscado de linguagem cinematográfica. O texto de Plínio Marcos não julga seus personagens, mas os coloca na zona desconfortável da imoralidade captada pelo espectador. E a direção usa da mise-en-scène teatral para fazer um cinema de contestação social. Uma pérola brasileira que merece ser revista, sempre.

Nota: ★★★★☆

 

 

 

Ficha Técnica

Ano: 1969

Direção: Braz Chediak

Roteiro: Braz Chediak, Emiliano Queiroz, Fernando Ferreira

Elenco: Glauce Rocha, Jece Valadão, Emiliano Queiroz, Carlos Kroeber

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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One thought on “Brazuca | A Navalha na Carne

  • 16 de junho de 2018 at 10:19
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    Obrigado pela análise, Cristiano Contreiras.
    Ano que vem NAVALHA NA CARNE completa 50 anos.
    Vamos esperar que o filme seja divulgado para que as novas gerações o conheçam.
    Grande abraço.

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