Brazuca | As Boas Maneiras

O Cinema Brasileiro é curioso, já que muitos dos nossos melhores filmes estão escondidos no underground e em festivais – ou seja, de difícil acesso ao cidadão comum. Biografias de figuras icônicas ou comédias “globais” fazem sucesso nas bilheterias brasileiras, mas filmes laureados em festivais mundo afora como Cannes, Sundance ou Berlim têm um reconhecimento mais restrito por parte do público.

O “complexo de vira-lata” atinge até nosso cinema. “Detesto filme brasileiro”, frase dita por muitas pessoas, mas que vangloriam obras estadunidenses ou de outros países repletas de efeitos especiais e, muitas vezes, com um roteiro pífio. Costumamos achar melhor o trabalho dos outros e não incentivamos ou recebemos incentivo na Sétima Arte.

Fato é que As Boas Maneiras sofreu desse malefício: co-produção franco-brasileira, estreou nos cinemas de uma forma restrita. Em um cinema de capital de uma famosa rede, verifiquei as poltronas e estavam vazias, além da vultosa quantia em dinheiro que cobravam para o ingresso. Isto é, além de mal divulgado, o filme foi feito para rico ver. Caso queiramos conferir uma ótima produção brasileira devemos nos contentar a ver pela internet, em streamings ou downloads ou outros meios alternativos para quem tem privilégio. Enquanto em outros países um longa como esse recebeu diversos prêmios, por aqui é um perfeito desconhecido.

Dirigido em parceria entre Marco Dutra e Juliana Rojas, o filme é ousado e criativo ao investir no realismo fantástico, algo tão raro de se ver em terras tupiniquins. É um filme de horror, mas feito de maneira tão apaixonada que não me recordo de ter visto um longa brasileiro do gênero com tamanho cuidado.

Os diretores, que já haviam trabalhado juntos antes em Trabalhar Cansa, agora criam esse filme que pode ser dividido em duas partes: a primeira, um thriller sobrenatural, e a segunda, um filme de monstro. Clara (Isabél Zuaa) vai trabalhar na casa da solitária gestante Ana (Marjorie Estiano), inicialmente como doméstica, mas, futuramente para ser babá do filho da patroa. No princípio, as disparidades econômicas e sociais entre as duas são bem trabalhadas pelo roteiro, que mostra sutilmente a exploração trabalhista por parte de Ana e a necessidade financeira de Clara, ao pernoitar naquela residência, sempre ao dispor para ajudar nas mais variadas tarefas domésticas.

A partir do momento em que as duas se conhecem, há uma tensão sexual entre elas. As barreiras anteriores não mais existem, mesmo diante do segredo que Ana carrega consigo e que revela-se bizarro. Essa primeira parte da história é construída de uma maneira sublime. O mistério em torno da gravidez de Ana, a aparência de que Clara sabe mais do que demonstra, os peculiares hábitos noturnos da patroa, enfim, tudo aguça a atenção do espectador. Temos claras influências de O Bebê de Rosemary.

A segunda metade do filme já parece ser algo totalmente diferente, em que mais parece uma mistura de Raw (a dieta rica em carne substituída por vegetais) com Um Lobisomem Americano em Londres (adaptado à nossa realidade, obviamente) e, assim, mostra muito bem as características dos diretores.

Enquanto Marco Dutra é mais voltado ao suspense, Juliana mistura o fantástico com musicais, como visto em Sinfonia da Necrópole. Em certos momentos, personagens começam a cantar para diferenciar a narrativa, o que enfatiza o tom de fábula dado ao filme (assim como os créditos iniciais e a própria trilha sonora, que evoca um terror digno da Universal e seus monstros).

A performance de Isabél Zuaa é excelente: sua personagem é recatada, mas expressiva. Marjorie Estiano também em grande atuação. Todas as mudanças de Ana são externadas de forma competente pela atriz. A dinâmica entre as duas mulheres, sozinhas e independentes, dão vida a cumplicidades e afetos. Um fascínio pelo diferente é compartilhado.

Outro fator impressionante que merece destaque é o trabalho de efeitos visuais e maquiagem, algo raramente visto no cinema nacional. A movimentação da criatura, a junção de efeitos práticos e digitais é fluida e em nenhum momento causa uma desconfiança ou é motivo de piada para quem assiste. As cenas noturnas paulistas são capturadas pelas lentes de Rui Poças e criam visões estonteantes.

Embora a primeira parte seja irretocável, a transição dessa para a parte final sofre alguns deslizes, principalmente por conta do roteiro e da escolha do elenco para dar continuidade à história. As crianças que aparecem no segundo ato são péssimas nas atuações e há certos furos no script que atrapalham um pouco a experiência, seja por deixar lacunas, seja por ser expositivo demais. Em uma cena, por exemplo, narrada por Ana em forma de desenhos em movimento, ela explica como ocorreu a gravidez, mas prejudica um pouco o mistério que vinha sendo desenvolvido.

O que antes era repleto de simbolismos para retratar classes sociais e tinha um suspense muito bem arquitetado é substituído pelo típico filme de monstro até o seu final, o que favorece a primeira parte em relação à segunda. Porém, não tira o brilho do filme. O roteiro se baseia em nossa cultura popular, através de tradições juninas, por exemplo, e “crendices” contidas nos interiores e nas áreas rurais do nosso país. Quem nunca ouviu histórias de lobisomem contadas por nossos avós ou por habitantes rurais, que afirmam ter visto ou alguma história do tipo? Isso favorece a identificação à situação retratada.

As Boas Maneiras é um grande exercício de filme de gênero, unindo dois pensamentos que trabalham em conjunto para criar uma obra única. O cinema de horror feito com carinho, competência e esmero, embora não seja imune a defeitos. Uma obra que merece ser reconhecida e premiada como foi fora do Brasil e é mais um caso de descrédito ao cinema nacional, em que fitas assim ficam relegados a um público específico, quando deveriam ser divulgados e atingir um público maior.

Nota:  ★★★★✰

Ficha Técnica:

brasileiro

As Boas Maneiras (Good Manners)

Ano: 2017

Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra

Elenco: Marjorie Estiano, Isábel Zuaa, Miguel Lobo, Cida Moreira

Fotografia: Rui Poças

Roteiro: Juliana Rojas e Marco Dutra

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Ibertson Medeiros

Graduado em Direito, sempre quis trabalhar de alguma forma com cinema, pois é uma paixão desde a infância. Cearense, fã dos anos 1970, curte o bom e velho Rock ‘n Roll e um cinema mais alternativo e underground, sem tirar os olhos das novidades cinematográficas.

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