Horroscópio | A Espinha do Diabo

 

“O que é um fantasma? Uma tragédia condenada a se repetir eternamente? Um momento de dor, talvez. Algo morto que parece ainda viver. Uma emoção parada no tempo. Como uma fotografia borrada. Como um inseto preso em âmbar?”

São essas frases que dão início a A Espinha do Diabo, terceiro longa-metragem de Guillermo Del Toro e considerado pelo diretor como seu favorito. A Guerra Civil Espanhola e a Ditadura de Franco já foram retratadas nas obras de Del Toro: em O Labirinto do Fauno, uma garota vive os horrores da guerra e o longa mistura realidade com fantasia, ao entrarem criaturas na trama. Na obra comentada, órfãos em um internato têm como ameaça maior os vivos, e não um fantasma. Eles mesmos são espectros da própria realidade, alheios à violência que acontece do lado de fora daquele local antigo e repleto de ferrugens.

A inocência em conflito com os horrores da vida real. Del Toro gosta de retratar essa temática em seus filmes. Cria monstros como símbolos da real maldade humana. O sucesso do filme foi avassalador, por conter uma história bem contada pelo diretor e uso racional de baixo orçamento. A utilização de diversos símbolos enriquece a narrativa: a figura fantasmagórica representando a própria Espanha, o míssil enterrado no pátio do orfanato que pode explodir a qualquer momento e o próprio título do filme são representativos de uma nação em frangalhos sob o viés pueril das crianças.

O filme não investe em jumpscares ou clima assustador. Algumas passagens do longa parecem até amadoras, porém a atmosfera criada prende o espectador. Del Toro, que tem como influência Mario Bava, insere um tom gótico ao lar das crianças. É um ambiente sujo, escuro e que ressalta o esquecimento que aquelas pessoas sentem ao viver ali.

O elenco infantil é formidável. Fernando Tielve interpreta Carlos, um garoto que tem um olhar precoce, uma criança que não é mais tão inocente assim. Íñigo Garcés vive Jaime, a criança mais velha e que já dá leves demonstrações do início da puberdade ao lidar com Conchita (Irene Visedo), amante do cruel Jacinto (Eduardo Noriega). Além disso, ele é o valentão do grupo e faz bullying com Carlos após sua chegada ao local. As outras crianças não têm muito destaque, mas todas têm rostos tristes, retrato do abandono e de uma vida difícil. Marisa Paredes é uma das donas do orfanato e tem um mistério em torno de si que envolve militâncias políticas e segredos carnais; e o veterano ator Federico Luppi interpreta Dr. Casares, um sábio idoso que conhece mais as crianças do que aparenta saber, além de ser profundo admirador de literatura (O Conde de Monte Cristo é constantemente citado no longa e tem até relação com determinada subtrama). Dr. Casares produz um “remédio” que pode curar diversas enfermidades, como a impotência sexual que o acomete e é a matéria-prima de tal engenhosidade que dá título ao filme.

crianças

Brevemente vemos Dr. Casares explicar que deram o nome de espinha do diabo a crianças que nasceram com a espinha bífida, espécie de anomalia presente em fetos. A solução para a impotência masculina está embebida em fetos assim, que possuem a espinha dorsal à mostra e simbolizam crianças que, supostamente, nunca deveriam ter nascido. Assim como os personagens infantis do filme, são crianças tiradas dos seus lares, do aconchego familiar, devido a uma guerra que separa pais e filhos e corrompe a inocência. Fantasmas do próprio mundo real.

É necessário mencionar a criatura que assombra os que ali moram: Santi, interpretado por Junio Valverde sob pesada maquiagem, foi criado de uma maneira amorosa por Del Toro. Através de desenhos iniciais, o diretor utilizou com sapiência o orçamento e imaginou um espírito que é um misto de terror com pureza. Uma rachadura na testa deixa marcas como se fosse um rosto de porcelana; pela ferida sai um sangue, como se a criatura estivesse submersa. Antes de morrer, Santi foi jogado dentro d’água, fato visto no início do filme. E o sangue flutuando da cabeça dele tem um visual poderoso. Marcas de ferrugem estão no rosto do personagem, assim como estão no corpo do míssil enterrado no pátio e nas construções. Um design primoroso, algo que seria desenvolvido ainda mais nos filmes posteriores de Del Toro.

A violência sempre esteve presente nos filmes do diretor e, mesmo que aqui esteja mais contida, ainda assim é ousado mostrar crianças mortas com requintes de crueldade – o próprio assassinato de Santi, crianças que são machucadas, que possuem marcas de sangue pelo corpo, assim como os idosos. Há uma coragem do realizador em mostrar essas cenas que lembram o uruguaio Narciso Ibáñez Serrador e o clássico absoluto Os Meninos, de 1976.

A Espinha do Diabo é um exemplo de um roteiro inteligente, com um clima gótico e ameaçador, sem apelar para sustos fáceis. Um terror bem construído que aproveita suas simbologias para invocar um medo mais abrangente. Em períodos difíceis, nós somos fantasmas de nosso próprio desejo, enclausurados contra a vontade diante da barbárie humana.

Nota: ★★★★✰

 

Ficha Técnica

Nome original: El Espinazo del Diablo

Ano: 2002

Direção: Guillermo del Toro

Roteiro: Guillermo Del Toro, Antonio Trashorras, David Muñoz

Elenco: Marisa Paredes, Federico Luppi, Eduardo Noriega, Fernando Tielve, Íñigo Garcés, Irene Visedo, Junio Valverde.

Fotografia: Guillermo Navarro

 

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Ibertson Medeiros

Graduado em Direito, sempre quis trabalhar de alguma forma com cinema, pois é uma paixão desde a infância. Cearense, fã dos anos 1970, curte o bom e velho Rock ‘n Roll e um cinema mais alternativo e underground, sem tirar os olhos das novidades cinematográficas.

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