Horrorscópio | Hereditário
O termo Pós-Horror criado para filmes como Corrente do Mal, A Bruxa e Ao Cair da Noite é infeliz. Trabalhos que investem em medo, sem apelar para sustos fáceis — os enfadonhos jumpscares —, já existiam nos anos 1960 e 1970. Longas que procuravam criar atmosferas sombrias, carregadas de uma fatalidade iminente, e que faziam bom uso da sonoplastia sem abusar dos aumentos de acordes para assustar o público.
Aquele susto antecipado por um som crescente faz sucesso ainda em Hollywood, mas para o fã do gênero de horror é um desgaste que alguns diretores tentam evitar. Clichês estão sendo substituídos pelo clima sufocante do terror subjetivo, que gera medo do desconhecido. Suspiria, O Exorcista e O Bebê de Rosemary são exemplos que fazem paralelo com o elogiado Hereditário, trabalho lançado no Festival de Sundance em Janeiro de 2018 e que agora recebe lançamento comercial no país.
Os filmes de Dario Argento, de Roman Polanski e de William Friedkin não foram citados em vão: todos criam um mistério no espectador sem maiores explicações e, no caso do longa italiano, casa perfeitamente a trilha sonora aterradora com verdadeiros pesadelos visuais em forma de cores. O estreante diretor Ari Aster bebeu muito da fonte dos filmes clássicos de horror setentista e criou um debut incrível, digno de cineastas veteranos.
Através da fotografia e montagem impecáveis, Aster manipula o espectador e os personagens com sua câmera ao mostrar que existem forças malignas ali que rondam a família protagonista. A utilização criativa de zoom in em pequenas miniaturas do cenário gera transições de cena sutis e simbolizam mãos de titereiro manipulando fantoches humanos. Dioramas construídos pela mãe Annie (Toni Colette) ganham tamanho real e movimentação dos personagens. O mal invisível comandando o destino familiar.
O luto é o primeiro a chegar àquelas pessoas: com o falecimento da matriarca da família Graham, mãe de Annie, passamos a conhecer a rotina após esse evento trágico. Charlie (Milly Shapiro), filha dela, passa a agir de modo estranho. O filho adolescente Peter (Alex Wolff) é atingido pelo clima pesado que é instaurado naquele ambiente, assim como o cético pai Steve (Gabriel Byrne). O mal vai sendo plantado aos poucos, o espectador sente-se sufocado à medida que a história passa, abarcado por um clima opressor.
A música de Colin Stetson ajuda a criar mais a noção de medo e nos sentimos encurralados. O peso da morte de entes queridos que pode desestruturar famílias caso não haja diálogo. Demônios interiores emergem, traumas e rancores. Tudo isso é intensificado no filme. A citação no parágrafo inicial à Suspiria foi lembrança inusitada: a trilha composta pelo Goblin no filme de Argento é personagem, assim como os de carne e osso. Cômodos da mansão são banhados em vermelho e outras colorações fortes, cores que são enfatizadas para nominar o medo. Janelas ruborizadas pela luz indicam perigo em meio à escuridão do céu noturno. E a música fica ali ao lado do seu ouvido, um convite ao macabro e ao misterioso caminho sem volta.
O roteiro escrito pelo próprio diretor é eficaz e todo detalhe no cenário faz parte da narrativa. É importante para o entendimento dos eventos fílmicos. Nada está ali em vão. É o tipo de trabalho em que uma revisão ajuda a unir todos os elementos da trama, todas as engrenagens ficam harmônicas e plenamente funcionais quando entendemos todo fio de maldade que permeia uma família esmagada pelo luto.
O elenco é primoroso. Milly Shapiro interpreta aquela figura jovem creepy que costumamos ver em obras do tipo: a aparência excêntrica e com comportamentos suspeitos. No entanto, o faz de modo que não pareça superficial e ficamos intrigados com as ações da garota. Alex Wolff transparece o desespero de cidadãos comuns diante de eventos que fogem à compreensão humana. A vida normal de um jovem abalada por eventos trágicos dá lugar ao profundo caos e o ator tem uma performance assustadora. Gabriel Byrne faz um papel difícil que é o de conciliador, do peso na balança da normalidade. Um ser descrente em eventos sobrenaturais que passa a presenciar desagrados. Porém, o principal destaque é mesmo Toni Collette, em uma atuação que já é apontada como digna de premiações futuras ou no mínimo indicações. Ela interpreta uma mãe que tem um passado desentranhado diante de situações extremas. A atriz entrega seu corpo e alma para a personagem.
O ato final deixa a sugestão dos dois primeiros arcos e explicita o terror, mas não de forma expositiva. Cria uma sequência de pura tensão e o clima de mistério é explicado sem subestimar a inteligência do espectador. É algo pequeno para diminuir uma obra como Hereditário, filme que pode facilmente estar no rol dos melhores do ano e, obviamente, do gênero. Que a A24 continue a nos presentear com obras inteligentes, perturbadoras e que consigam dialogar com cânones do horror de uma forma harmoniosa.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica:
Hereditário (Hereditary)
Ano: 2018
Direção: Ari Aster
Elenco: Alex Wolff, Gabriel Byrne, Toni Collette, Milly Shapiro, Ann Dowd
Roteiro: Ari Aster
Música: Colin Stetson
Fotografia: Pawel Pogorzelski