Fotogramas | O Iluminado
O descontrole psicológico é trazido à tona em O Iluminado, através da releitura proposta por Stanley Kubrick do clássico livro de Stephen King. A adaptação, hoje cultuada, rendeu inúmeras cenas memoráveis.
A sequência teve uso da câmera móvel steadicam, sendo Kubrick um dos primeiros nesta técnica que dava maior mobilidade e movimentação nas cenas com imagens estáveis sem tremulações.
O take coloca Jack Torrance (Jack Nicholson) caminhando, já físico e emocionalmente debilitado, em transe psicótico e sob influências espirituais, perseguindo a esposa Wendy (Shelley Duvall) e seu filho Danny (Danny Lloyd), no vazio e sinistro Overlook Hotel.
O recorte desta análise centra-se num breve período de dois dos dez minutos que totalizam toda a situação de tensão no filme. Faz parte dos momentos finais da fita.
Com um leve zoom out, vemos Jack se mover à nossa frente ao andar por um corredor adornado com papel de parede amarelo, exibindo um sorriso maligno enquanto cambaleia com passos tímidos.
A ação logo corta e exibe a perspectiva de Wendy que tenta escapar do banheiro do qual se escondeu, fugindo por uma janela apertada, sufocada pela neve que quase toma toda a saída. Novamente, há um corte que exibe Danny, já fora do Hotel, olhando para a sua mãe que tenta fugir. As três perspectivas situam para o público a noção de como tais personagens vão agir durante esse momento, culminando na resolução do final do filme logo mais.
A ação retoma a perspectiva de Jack. Agora, a câmera mantém-se atrás do personagem, como se seguisse seus passos. Nicholson entoa a frase famosa americana: “Come out, come out, wherever you are“, enquanto aproxima-se do banheiro em que se encontra Wendy. Há um rápido corte para ela, numa tentativa fracassada de sair pela janela.
“Little pigs, little pigs, let me in!”
Vemos uma interessante construção de direção: a câmera se porta estática ao lado do ator, então o público tem a visão unilateral do personagem que se posiciona em frente à porta do banheiro. Como não há outras angulações, nem cortes da edição, Kubrick faz com que a atuação de Nicholson seja mais provocadora por conta da expressão que cria. O ator bate com a mão direita na porta, maneando a cabeça levemente para a nossa direção; assim vemos seus olhos vidrados, que revelam a expressão de tormento e psicose.
Jack Torrance, mais uma vez, usa de uma frase conhecida, agora uma referência cínica e assustadora de Os Três Porquinhos. A frase dita pelo lobo mau na fábula folclorista, aqui surge como um elemento que exibe a faceta perturbadora do protagonista que tenta amedrontar a sua esposa.
A ação volta-se para Wendy que, no limite do desespero, pega uma faca em cima da pia e se posiciona ao lado da porta como se pronta para defesa. Enquanto isso, a trilha sonora atinge maior tom de dramaticidade.
Novamente, a ação corta para Torrance que continua a gritar as frases: “Not by the hair of my chinny, chin, chin! Well I’m huffing, I’m puffing, I’ll blow your house in!”. É quando há um novo corte, mostrando o ângulo novamente por trás do ator, como se alguém o perscrutasse de longe; momento no qual ele pega o machado e parte para arrombar a porta.
O ângulo adquire um novo ponto. Se antes a câmera permanecia posicionada à esquerda do ator, quando Torrance começa a dar machadadas contra a porta o take exibe um outro ponto de perspectiva. Só que, dessa vez, a câmera não se preserva estática: acompanha os movimentos dele em cena. Indo de um lado ao outro, da esquerda à direita, a câmera exibe o movimento do golpe certeiro do machado contra à porta que começa a se fragmentar.
Então, Kubrick faz um tête-à-tête cênico: vemos a ação do Torrance esfolar a madeira da porta com seu machado; e o desespero de Wendy do outro lado, segurando com as mãos trêmulas a faca, seus olhos esbugalhados e os gritos de agonia. Temos a ideia de cena de horror: o confronto de um homem contra uma mulher em forte carga dramática de tensão e nervosismo.
Se nas perspectivas de Torrance visualizamos uma luz mais escura, em tom mais avermelhado, já que se encontra em um ambiente de quarto à meia-luz de um abajur; as cenas de Wendy exibem uma atmosfera mais sóbria, a forte luz que é refletida na cerâmica branca do banheiro.
O ângulo que exibe a posição física de Wendy também permanece com a câmera estática, a personagem se fixa frente ao público; vemos a porta de madeira no campo de visão em perspectiva maior do lado esquerdo da tela. A ação continua sem cortes por breves 30 segundos, capturam os gritos e o desespero da mulher, quando o machado finalmente rompe a porta e os pedaços de madeira invadem o banheiro.
Agora, o take fixa-se para a porta que se fragmenta. E lá do fundo, como se contornado por uma moldura, a expressão sinistra de Torrance que parece olhar diretamente para a câmera. Ele se aproxima do buraco que fez, encaixando sua face de desvairado entre a abertura, proferindo uma das frases mais famosas do filme: “Here’s, Johnny!“.
O momento desta análise termina quando Torrance tenta abrir a porta, colocando a mão no buraco que fez na porta, e tenta girar a maçaneta. É quando Kubrick nos induz no improvável: ele é perfurado pela faca de Wendy, dando um forte grunhido de surpresa pela atitude da esposa.