Bang Bang | O Passado Não Perdoa

 

O passado vem clamar o seu direito para as coisas. Não há como esquecer, não há chances, ou alternativas. A ideia do título brasileiro faz todo sentido na trajetória exposta por esta fita lançada em 1960, com direção de John Huston.

Ironicamente, O Passado Não Perdoa não foi reconhecido pelo cineasta, muito menos pela crítica na época de lançado. A verdade é que, hoje, a fita obteve maior atenção por parte de admiradores das obras de Huston e também do western. Baseado no livro de Alan Le May, autor de Rastros de Ódio, a obra é uma representação sobre as agruras da intolerância racial.

Na biografia An Open Book, Huston dizia que o filme merecia uma abordagem mais forte no traço psicológico. Talvez, algumas atitudes da United Artists acabaram por modificar o sentido inicial da adaptação, amenizando a história violenta para um drama menor, desagradando o cineasta que queria filmar uma resposta ao filme protagonizado por John Wayne, ícone contra o preconceito e racismo. A ideia era colocar uma representante feminina como uma figura heroica, coisa que não ocorreu com força. Entretanto, não devemos desprezar o forte conteúdo que a fita ainda transmite.

“Que falta de educação, comer o teto da casa!”

A fala abre o prólogo. Interessante o simbolismo exposto no primeiro take. Huston exibe a aparência de um local que parece abandonado, isolado do mundo, como uma fazenda no meio do nada. O ambiente solar, de acordo com as lentes fotográficas de Franz Planner (que anteriormente havia realizado Da Terra Nascem os Homens, outro western renegado pelo realizador, William Wyler), dá o tom selvagem de uma trama de proporção dramática.

Vemos o tom amarelado e alaranjado que ressaltam a incidência da luz, exibindo a noção do agreste da localidade da região do Texas, enquanto a câmera recorta com um leve zoom out a casa da qual a protagonista entra em cena: da porta, sai Rachel que olha para o teto e vê seu gado invadir o telhado, ruminando o musgo verde. Ela profere a frase em protesto aos animais; numa ideia de proteção feminina contra algo que afeta a aparente tranquilidade familiar. Huston abre seu filme com a metáfora visual que exibe os percalços que a protagonista irá enfrentar ao longo de 2 horas de projeção.

Audrey Hepburn interpreta Rachel, filha adotiva da família Zachary, habitantes da fronteira do Texas que, após a Guerra Civil, trabalham no negócio de gados e cavalos. Liderados pela matriarca Mattilda (Lilian Gish, excepcional) e Ben (Burt Lancaster), acabam por entrar em conflitos com os índios Kiowas quando um estranho homem ameaça devastar a localidade e reinvidica Rachel como sua.

A cena é muito bem delineada: a figura quase fantasmagórica, como um espectro, invade a localidade. Abe Kelsey (Joseph Wiseman), um soldado amargurado da Guerra Civil, cego de um olho e segurando uma espada, grita no horizonte (numa sequência em que a fotografia assume tons cinzentos e jogos de luz e sombra): “Eu sou a vontade de Deus. Fogo e vingança. As ofensas serão reparadas e as verdades ditas!”. A partir disso, com a notícia do rapto da menina índia criada fora da cultura, o equilíbrio entre índios e brancos cai por terra.

“Que Deus nos proteja do mal. Branco ou vermelho!”

Descoberta como descendente indígena, Rachel inquieta-se com a sua origem. E é justamente após os trinta minutos iniciais que o roteiro projeta essa transformação da personagem com suas origens. De respeitada à vítima de racismo e intolerância, já que sofre repúdio dos habitantes e enfrenta a posição de renegada.

O Passado Não Perdoa tem cenas interessantes de construção de ação. E Huston caracteriza seu ambiente narrativo de western equilibrando o drama psicológico da sua protagonista com arquétipos do gênero. É uma fita com personagens masculinos, mas sobre uma mulher. Não só Burt Lancaster funciona como um modelo de herói americano, defendendo a opressão vivida pela personagem feminina que se defende de todos; mas, trata-se de um estudo sobre o machismo e o império masculino numa terra de conflitos.

Não à toa vemos desde a primeira tomada que Hepburn, com aquele seu ar aristocrata habitual, trazia uma personagem de grande alcunha de reflexão. Huston coloca uma mulher em terra de sangue e intolerância, enquadrada pela tela Panavision. E todos os demais homens que figuram pela trama são arquétipos que a oprimem.

“Por que não para de zanzar entre os homens e fica com as mulheres?”, indaga Ben em dado momento. A colocação surge como uma forma de provocar essa personagem, já que ela não se submete ao sistema. Rachel renega a própria submissão feminina, contesta a sua identidade, e parte para um maior sentido em sua existência. A cena em que ela se olha no espelho, como uma verdadeira índia, consciente de sua essência, é um momento bem concebido pela direção. Huston exibe a face atônita de Hepburn, em silêncio, ao confrontar o espelho.

“Cavalos e mulheres são a mesma coisa para os índios!”

Tendo o confronto entre os Zachary com os Kiowas, Huston induz o público no palco de tensão. O terço final exibe a faceta de ódio e conflito sangrento que invade a localidade. A ação desenvolve-se, praticamente, toda em torno da casa. O rancho dos Zachary é palco de luta e justiça.

Enquanto isso, vemos a aproximação entre Rachel e Ben. Os sentimentos e atração soam subliminares, mas o público consegue ver que os “irmãos” nutrem algo além do afeto. Enquanto Lancaster mostra uma atuação contida, Hepburn nem sempre convence como uma mulher do campo, mas seu esforço dramático é evidente. Só que a urgência da tensão é necessária, e Huston opta por investir na dualidade dos Zachery com os índios que calcular (ou seria calcar?) o filme em cenas românticas.

A técnica da produção é um grande mérito, a narrativa alia-se da fotografia para criar uma identidade com o público. Um exemplo, a dramaticidade nas sequências de poeira, fumaça e vendavais (a cena da aparição do soldado como um fantasma) e tons de amarelo, laranja e azul ressaltados por Franz Planer no epílogo que coloca a família em campo de batalha com os índios. Em contrapartida, a trilha sonora de Dimitri Tiomkin (que fez trabalhos memoráveis como Matar ou Morrer e Assim Caminha a Humanidade), exibe melodias com ares melancólicos, de acordo com a natureza intimista deste conto social.

Pode não ser considerada a obra-prima ou um dos maiores exemplares da filmografia do cineasta, mas é um filme bem dirigido e com arcos dramáticos centralizados. Uma fita ainda impressionante e uma reflexão sobre a intolerância, algo que ecoa nesta atualidade.

Nota: ★★★★✰

 

 

 

Ficha técnica

 

Título original: The Unforgiven

Ano: 1960

Direção: John Huston

Roteiro: Ben Maddow (baseado no livro de Alan Le May)

Elenco: Audrey Hepburn, Burt Lancaster, Audie Murphy, Lillian Gish

Trilha sonora: Dimitri Tiomkin

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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