Brazuca | O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias

 

Enquanto aguarda o retorno dos pais, uma criança precisa reconstruir a própria identidade, numa cultura de poucas certezas. Nesse longa genuinamente brasileiro, o diretor Cao Hamburger usa o progresso triunfal do Brasil na Copa do Mundo de 1970 como pano de fundo para falar sobre o doloroso processo de aprendizado, vivido por um garoto de 12 anos, vítima indireta dos horrores da ditadura militar.

Caracterizado por um ponto de vista subjetivo, a história é contada através dos olhos de seu jovem protagonista Mauro (Michel Joelsas), que narra vislumbres de sua vida, como as pequenas coisas da infância: o álbum de figurinhas, o futebol de botão, as brincadeiras, as descobertas e reações às pessoas e eventos. Assim, tendo se encontrado em um novo lugar cercado por pessoas que nunca conheceu antes, o menino é forçado a se adaptar e alterar sua personalidade, atitudes e perspectiva de vida.  Tudo resulta em um retrato sincero e efetivo sobre sua personalidade.

o ano em que meus pais

O mundo que a criança não conhece, mas aos poucos desconfia, é mostrado de forma sutil. Os pais de Mauro saem de cena porque precisam fugir do regime militar. Nesse contexto, Cao consegue retratar aspectos históricos e políticos, sem falar diretamente sobre o assunto. O filme é todo crível. Desde os mistérios da ditadura, até a vitória do Brasil na Copa do Mundo do México, a narrativa é fiel com aquela realidade. A seleção brasileira entra em cena para aliviar as aflições do menino, mas cumpre seu papel real de entretenimento, sem tocar nas feridas da nação. A nostalgia é inevitável, tanto para aqueles que viram o Brasil de Pelé se tornar tricampeão, quanto para os que foram tocados, de uma forma ou outra, pela repressão dos militares.

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Ao menino, coube a missão de adaptar-se em sua nova morada. Eis aqui o grande trunfo do filme, e uma característica muito marcante de Cao Hamburger, que é a conexão narrativa acerca do ser humano no espaço que ocupa. A casa do falecido avô que a criança toma para si, por não ter mais nada a que se agarrar, em contraponto com o mundo externo como elemento de interação, sociabilidade e descobertas. O constante aprender de morar naquele ambiente estranho e interagir com o mundo lá fora, despertam o sentimento de conformação com a situação. Através daqueles espaços, e das pessoas que os compõem, o menino possibilita trocas de experiencias; essenciais em seu processo de transição, na passagem da infância para a adolescência.

Essas interações implicadas pela criança são o frescor do filme. A improvável química entre o menino mimado e o velho rabugento e “pão duro”, resultam em vários momentos divertidos. A amizade com as crianças do bairro (uma ode à nostalgia setentista), principalmente com a espirituosa Hanna (Daniela Piepszyk), retratada como a moleca que lidera as travessuras dos meninos; a paixão platônica de Mauro, por aquela que parece ser a moça mais cobiçada do bairro; o contato com o estudante comunista Ítalo (Caio Blat), que fortalece a desconfiança sobre as “não férias” dos pais; e a admiração pelo goleiro do time de várzea, que rende uma das melhores linhas, proferida pelo menino: “E de repente, eu descobri o que eu queria ser: Eu queria ser negro, e voador.”

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Infância e ditadura. Embora haja essa distância entre os temas, há algo de sublime no modo como a equipe técnica entrelaça esses arcos emocionais. Desde a impecável direção de arte que nos leva de volta a 1970, de forma natural e confortável; até à fotografia límpida de Adriano Goldman, e a trilha sonora de Beto Villares, que acrescentam brilho à simplicidade do longa, alternando perfeitamente entre o som ritmado de jazz, e o samba retrô da época. Um exemplo que comprova a competência da equipe em criar essa articulação: a cena em que as crianças estão em uma festa, dançando de forma espontânea, ao som de “Eu sou Terrível” do Roberto Carlos. Os passinhos marcados dos meninos são mesclados ao galope dos cavalos, anunciando a chegada dos militares. A música vai silenciando, dando lugar à trilha tensa que passa a embalar a violência da qual Mauro seria testemunha.

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Diante de tudo isso, reside a habilidade de Cao no desafio de articular essa narrativa sobre passagem, dentro do contexto político da época. A forma como o fez é simples e, ao mesmo tempo, significativa. Seus personagens são afetados pela política, mesmo sem precisarem falar sobre isso em seus discursos. O filme se fecha lindamente em torno dessa ideia, como na belíssima cena em que o menino volta para casa pelas ruas vazias, e depois ao retorno da mãe, sem o pai. São ausências causadas pelo discurso político, repleta de valores emocionais, portanto, humanos.

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Elaine Timm

Elaine é gaúcha, formada em Jornalismo, atua como social media e curte freelas. Blogueira de várzea, arrisca escritas diversas. Cinéfila, amante dos livros, musical e nerd desde criança, quer ser Jedi, mas ainda é Padawan. Save Ferris.

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