Poltrona Pipoca | Calibre

O gatilho para uma onda de crescente violência — ou quando a natureza humana se transforma em função de um acontecimento? Após realizar curtas notáveis entre 2006 e 2014 (The Gas Man, Island e Daylight Hole), Matt Palmer estreia na direção de um longa-metragem.

Calibre, produzido e já disponível no serviço de streaming Netflix, acompanha a caótica descida ao inferno vivenciada pelos amigos Vaughn (Jack Lowden, de Dunkirk) e Marcus (Martin McCann, de 71: Esquecido em Belfast). Após o reencontro, os dois partem para uma isolada comunidade na Escócia a fim de caçar em um final de semana. O que parecia ser um momento de diversão transforma-se numa jornada de violência e morbidez; uma sucessão de acontecimentos que envolvem os dois protagonistas.

Palmer não tem receios de incutir o público logo na verve dramática e de teor sombrio: no momento em que os amigos praticam a caça, sem querer, cometem um assassinato. É quando o roteiro modifica seu tom, aparentemente pacífico nos primeiros dez minutos, para promover um gradual conceito de horror psicológico.

Enquanto Vaughn e Marcus tentam encobrir o acidente que vira de ponta a cabeça as perspectivas de cada um, percebemos na construção do roteiro um exercício de tensão sobre os percalços da culpa humana. Dentro da cidadezinha, o pesadelo se estabelece entre os “amigos-irmãos”, buscando proteger-se de uma situação que parece incontornável.

Por vezes, algumas colocações do roteiro nos remetem aos filmes Amargo Pesadelo, O Homem de Palha ou Sob o Domínio do Medo, obras que colocam um ser humano, de personalidade pacífica e sem malícia, tendo que confrontar a índole alheia e situações de demarcada violência. Por isso mesmo, Palmer nos mantém próximos, através de uma direção discreta e firmada na narrativa lenta, dos passos dos dois jovens enquanto tentam se defender.

“Tem que deixar suas emoções de lado e aflorar o seu instinto!”

Sem entrar muito no enredo, para não revelar mais detalhes, o fato é que temos um filme que exibe o desespero de indivíduos que tentam encobrir um crime que cometeram sem intenção. Interessante como a personalidade de cada um é diferente: enquanto a atuação de Lowden mostra a vulnerabilidade de seu Vaughn, com medo e culpado pelo que cometeu contra um inocente; vemos em McCann uma certa frieza na atuação, bem condizente com Marcus, um homem que está disposto a se defender mesmo sendo dissimulado. A diferença entre esses homens que se opõem moralmente, mas que tentam se livrar do crime que os arrasta para a angústia, são pontos positivos na fita.

Infelizmente, nem sempre a direção de Palmer parece encontrar um tom adequado à situação de perigo e contorno psicológico. Enquanto o primeiro ato mantém uma tensão mais articulada, o segundo parece dissolver o teor nervoso. Às vezes, acaba por gerar certo desinteresse. Ainda assim, as atuações de ambos os atores e algumas proporções violentas que o roteiro cria, são destaques. Sabemos que teremos uma trama que investe no macabro, com algumas cenas levemente propensas à violência.

Sem uso abusivo de trilha sonora, evitando indício melodramático e manipulativo, a fita preserva-se como um formato mais cru: a fotografia com tons frios, de acordo com os ambientes gélidos, como uma metáfora à melancolia dos protagonistas que se contrapõem aos moradores da região; silêncios demarcados e cenas que nem sempre exibem tantos diálogos; takes noturnos, aproveitando-se da natureza assombrosa do local, com vegetação densa e casas de aparência abandonada, como ruínas. Um cenário quase de filme de horror.

“Ir à polícia fedendo a uísque nos tornaria homicidas?!”

Ainda que oscile em sua narrativa, tornando a dispersão provável — e com um roteiro que acaba por ser redondo, já que não cria núcleos e camadas além dos que possamos prever — o filme funciona em seu aspecto de thriller. Inclusive, por explorar alguns elementos de criação atmosférica de suspense: a sequência em que os amigos jantam, em companhia de alguns dos moradores da região, é um exemplo desta concepção.

O momento exibe Vaughn e Marcus, temerosos pela iminente descoberta do crime, enquanto a direção investe no tom cínico e irônico dos personagens ao redor. O uso de alguns conceitos cênicos torna a cena tensa: os pratos recebem uma carne mal passada e sangrenta; as paredes do restaurante em que os personagens se encontram são rubras; guardanapos que adornam a mesa ficam visíveis no take, também na cor vermelha. Tais elementos são símbolos da violência que caracterizam a carga psicológica desta obra.

Calibre é um filme de tensão e trama que facilmente dialoga com o público. Não há muitos floreios, nem mesmo maiores desdobramentos. O filme atinge maior densidade no terço final, mas sem perder a proposta intimista. Um trabalho que mostra como a culpa é capaz de alucinar o ser humano. Vale a conferida.

Nota: ★★★✰✰

Ficha Técnica

 

Ano: 2018

Direção: Matt Palmer

Roteiro: Matt Palmer

Elenco:Jack Lowden, Tony Curran, Martin McCann, Kate Bracken

Trilha Sonora: Anne Nikitin

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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