Apimentário | Um Canto de Amor

A prática do voyeurismo como um ato humano; o desejo obscuro ou quando o tesão surge como um instinto incontornável. Não há como fugir: o indivíduo sente-se atraído pelo desconhecido e o que é tido como tabu; algo segredado. O tesão surge, em grande parte, por algo que seja proibido ou que seja visto como libertino, transgressor ou mesmo perverso.

A ideia da concepção de “sexo sujo” ou mesmo selvagem é algo que se relaciona à sexualidade mais primária, longe do que é conservador ou tido como puritano. Não à toa, o exercício do voyeur seja basicamente este: promover seu interesse na observação e potencializar a sua libido com tal condição.

Não é por menos que o sexo ainda seja um elemento de debate e descobertas, algo que não dá para definir em posições, visto que as possibilidades para os caminhos dos prazeres carnais sejam fundamentadas no ilimitado. Cada ser humano exerce seu prazer individual; cada um tem seus anseios e seus fetiches.

Em 1950, o novelista francês Jean Genet foi provocador ao lançar um filme mudo, em preto e branco, com metragem de apenas 30 minutos.

Um Canto de Amor é um trabalho perfeito para a atmosfera homoerótica, bastante ousado por conta das intenções narrativas. Por trazer uma forte carga de erotismo, muitas pessoas o classificam como soft-porn. Superficialmente, o filme seria apenas uma amostra sobre um olhar mais íntimo ou mesmo um aprofundamento do desejo homossexual: fantasias dentro do espaço de uma prisão.

Centrando-se no imaginário gay e de acordo com os fetiches mais característicos deste nicho, Genet exerce um trabalho que centra seu fascínio na linguagem imagética, recurso perfeito para o aspecto do voyeurismo: homossexuais que gostam de observar outros em práticas de sexo perverso e sadomasoquista.

O roteiro explora as ideias sobre sadomasoquismo e violência como aspectos de atração entre os homens retratados — e do provável interesse do espectador que, assim como o personagem do guarda age como um voyeur, instigado com as cenas de sexo e atos libidinais.

Interessante que a fita se utiliza de imagens para dar sentido às interpretações: corpos em movimentos, homens que se enroscam nos outros, como representações caricaturais do imaginário de idealização erótica gay. Genet exalta esses personagens másculos, com seus corpos que fazem exercícios perfeitos, liberam a testosterona e entram na “pegação coletiva”.

O filme utiliza-se de três personagens principais: dois prisioneiros gays confinados e que se amam entre si, sob o olhar atento de um guarda que sente necessidade em observá-los. A ideia de observação como prática para o orgasmo, também é exposto nessa caracterização do homem que olha o outro puramente para sentir prazer.

Não deixa de ser intrigante quando observamos que a fita foi criada na década de 1950, com temas tão ousados e quebrando a própria noção de estereótipos. A ideia de centrar a posição profissional de um guarda, que admira o sexo entre prisioneiros, questiona o comportamento e a moralidade padrão. Sim, um trabalho que provoca.

Há cenas bem sensuais, como o momento em que um prisioneiro negro ritma uma coreografia para a orgia; ou quando vemos um banho com um outro que se masturba sem receio. A malícia é proeminente. A câmera de Genet não tem pudor em exteriorizar o que há de mais caloroso no universo homoerótico: closes em axilas, pernas, braços, pescoço ou mesmo provocando ao exibir os homens suados com o membro fálico bem à mostra, ereto e sem pudor.

Como uma espécie de “sonho sexual”, por ter essa transparência um tanto onírica em termos de imagens — principalmente por conta do uso do contraste das luzes e sombras — e da mise-en-scène da prisão erótica, o filme se fundamenta como caráter surrealista.

O erotismo se transveste como algo poético, sensorial e com capacidade de tornar algo tão transgressor em apreciação natural. A sutileza também é presente na maneira como a fita expõe o desejo e até o sentimento entre os dois prisioneiros principais: o público percebe que ali coexistem o tesão e afetividade — ainda que sem se tocar, separados por uma parede, os dois homens interagem de maneira própria, buscando alguma espécie de contato.

Jean Genet claramente quis exercer um ato deliberado e promissor quanto às motivações e idealizações do mundo gay. O formato ainda exerce fascínio e é ponto de provocação na contemporaneidade. Curiosamente, o filme não possuía som algum quando lançado. Porém, em 1973, o instrumentista Gavin Bryars compôs uma trilha sonora para a obra, dando um aspecto mais psicodélico e até mais delirante à apreciação.

Nota: ★★★★✰

Ficha técnica

 

Un Chant d’Amour

Ano: 1950

Direção: Jean Genet

Elenco: André Reybaz

Trilha Sonora: Simon Fisher Turner, Gavin Bryars, Patrick Nunn

Fotografia: Jacques Natteau

 

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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