Descubra Um Clássico | Mortalmente Perigosa (1950)

A sequência de cinco minutos filmada de uma só vez, a câmera fixada no banco de trás do carro, em que o casal criminal segue rumo ao assalto de um banco, expõe a ideia principal: a imoralidade. O take único, avançado para a época e com uma direção rebuscada, colocou Mortalmente Perigosa na linha de noir moderno.

Lançado originalmente nos cinemas com o título “Deadly Is The Female”, teve o nome alterado após fracassar nas bilheterias, sendo relançado como “Gun Crazy”. O fato é que, hoje, a fita adquiriu um caráter de maior importância, sendo cultuada pela direção ousada e roteiro crítico.

A relação entre Bart Tale (John Dall) com Annie Laurie Star (Peggy Cummins) é como Bonnie & Clyde. A ideia de Joseph H. Lewis era discursar sobre uma história de pessoas que entram para o crime por consequências do meio em que vivem; educados e influenciados negativamente. Por isso, a trama se inicia com um breve prólogo que exibe a infância do protagonista que quebra o vidro de uma loja para roubar uma arma.

A obsessão por armas é visível — vemos de onde nasce o tal instinto do garoto que se atira numa sucessão de eventos que o prendem à marginalidade. Quando adulto, Bart sai do reformatório onde viveu e se apaixona pela libidinal Annie, a garota que se apresenta em um show de tiros de um circo decadente. A sequência é interessante, pois exibe a figura feminina como uma justiceira do western: a calça comprida negra, o chapéu de cowboy, um grande cinturão que mantém um revólver.

A aproximação entre esses dois indivíduos, errantes e imperfeitos, é acentuada pelo ótimo roteiro de MacKinlay Kantor e Dalton Trumbo (sob o pseudônimo de Millard Kaufman). O argumento original foi baseado em um conto publicado na revista Saturday Evening Post. Enquanto Cummins exala maior apelo e atua de forma dúbia, tal qual uma femme fatale, uma espécie de ícone noir que se aproxima das personificações de Veronika Lake e Barbara Stanwyck — a voz levemente grave, o cabelo loiro adornado por uma boina, a postura propensa à sensualidade —, Dall cria um personagem mais fragilizado, como uma vítima de um sistema.

A fita acompanha o casal em constante fuga, já que permanecem na zona da criminalidade por inúmeros assaltos que cometem. É irônico constatar o quanto o roteiro parece se firmar na trajetória real de Clyde Barrow e Bonnie Parker; inclusive algumas cenas de assaltos com o carro em movimento nos remete ao clássico de Arthur Penn, lançado 17 anos depois — um estudo sobre a vida dos criminosos mais famosos da década de 1930.

“Matamos só para vivermos sem trabalhar!”

Um dos méritos para que este filme ainda permaneça atual é a crítica que o roteiro faz. Ainda é pertinente a relação do porte de armas como determinante para a facilidade em que uma pessoa possa matar qualquer um a esmo. A situação delicada é incutida no público, através de Bart, o homem que tinha paixão por armas e pagou pela própria obsessão que o levou ao crime.

A posição moral é sutil, mas presente, já que exibe a faceta de uma lei que não impede que qualquer pessoa possa ter facilidade à munição. Então, como fazer que alguém não caia no erro de usar uma arma para aniquilar outrem? Não à toa que os Estados Unidos permanecem como absoluto recordista de atiradores que matam inocentes.

Joseph H. Lewis conduz a ação em cima da figura desses dois criminais apaixonados. E o roteiro trata de desconstruí-los, gradualmente. Enquanto Annie não parece sentir tanto remorso do que faz, nem de matar alguém; Bart questiona sua própria índole, em cenas de intimidade de ambos, onde este homem repudia seu status de assassino. O peso das ações e a reflexão moral surgem através da boca masculina, ironicamente. “Somos assassinos imoderados”, grita em certo momento.

“Sabe que esperava por essa noite contigo a vida toda?”

Ainda que o filme exiba a relação perigosa dos criminosos que são caçados pelo sistema policial, com cenas que exibem o poder sensacionalista da mídia da época e manchetes exageradas que colocam os amantes como indivíduos delinquentes e caóticos, temos um conto psicológico sobre culpa.

Há uma cena que reforça essa ideia: Cummins permanece de costas para a câmera, desabafando sobre o peso da culpa e verbaliza que matou inúmeras pessoas por conta de sua ambição. A atriz se posiciona de forma que não vemos seu rosto, como se para simbolizar a vergonha da própria confissão. Compreendemos que não se trata de um mero filme de ação, mas dramático. E que trata de possíveis arrependimentos humanos.

E, quando no terço final, a narrativa preocupa-se em exibir um momento de descontração de Bart e Annie num parque de diversões, como amantes comuns, percebemos que o longa também é uma história de amor. A sequência reforça uma visão otimista ao colocar ambos como crianças inocentes numa montanha-russa, sem qualquer olhar de julgamento alheio. Dois criminosos livres e que se amam, ainda que presos nos próprios caminhos tortuosos que criaram para suas vidas.

Nota: ★★★★★

Ficha Técnica:

Título original: Gun Crazy

Ano: 1950

Direção: Joseph H. Lewis

Roteiro: Dalton Trumbo (Millard Kaufman), MacKinlay Kantor

Elenco: Peggy Cummins, John Dall, Berry Kroeger, Russ Tamblyn

Fotografia: Russell Harlan

 

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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