Sci-Fi | Não Me Abandone Jamais

 

É provável que a maior virtude da humanidade consista em acreditar no melhor, ainda que tudo aponte para um único lugar. Talvez por isso, a realidade dos protagonistas de Não Me Abandone Jamais seja dolorosa o suficiente para que, ao final do filme, o espectador assista aos créditos rolarem sem sequer se mover.

Demora um pouco para compreendermos a aura de melancolia das palavras de Kathy H. (Carey Mulligan) e das suas memórias no idílico colégio interno de Hailsham. Uma estranheza palpável assolava a vida daquelas crianças. A preocupação dos “guardiões” com a sua saúde e todo o incentivo à produção de arte carregava mais significados do que se esperaria de uma escola normal. É só quando a personagem de Sally Hawkins resolve ser honesta com os estudantes — numa cena onde a frieza é quase tão assustadora quanto o que se escuta — que entendemos do que tudo aquilo se trata: cada um ali era um clone perfeito que em alguns anos serviriam como doadores de órgãos vitais para pessoas doentes. Consequentemente, todos eles morreriam cedo.

Estamos diante de um filme de ficção científica, mas não dos mais convencionais. Sem laboratórios, nem máquinas futuristas, o mundo de Não Me Abandone Jamais é uma realidade alternativa onde apenas sabemos que avanços na genética ocorridos em meados do século XX tornaram possível a maior longevidade. Realidade essa que poderia ser perfeita, se não a víssemos da perspectiva dos seres criados para abrir mão de suas vidas em prol de outras, sem que isso seja uma escolha.

Assim sendo, o longa adaptado do romance de Kazuo Ishiguro é muito mais um drama que qualquer outra coisa. Sua história centra-se em Kathy, Tommy (Andrew Garfield) e Ruth (Keira Knightley), desde os tempos de Hailsham, quando todos são amigos; passando pela sua juventude, quando atritos comprometem a relação dos três; até o tempo em que, já adultos, a vida os coloca de frente uns para os outros novamente.

O diretor Mark Romanek opta por criar um clima quase soturno que é muito bem-vindo para contar essa história; desde a fotografia por vezes cambaleante e os figurinos desprovidos de cores vivas, até os acordes melancólicos da trilha. É assim que o longa evidencia o sentimento de desesperança daqueles personagens, que nunca — mesmo que demonstrem insatisfação — parecem questionar seus destinos. Chega a ser ingênuo da nossa parte crer que em algum ponto eles vão se rebelar contra aquela organização e se libertar, tal qual várias histórias clássicas de distopias e ficção científica. Não me Abandone Jamais sequer flerta com essa possibilidade: ele está concentrado em cercar aqueles personagens de desejos e reflexões frente à morte eminente.

O close no pássaro, símbolo da liberdade, vem para contrapor a prisão em que vivem aqueles personagens.

O filme conduz a trajetória de Kathy e seus amigos de maneira inteligente desde a primeira parte, quando os personagens são vividos por um ótimo trio de jovens atores, deixando as personalidades de cada um bem delineadas. Desde criança, Kathy é empática e dedicada, ainda que essas não sejam as únicas razões que a levem a se tornar uma “cuidadora”, uma espécie de clone que auxilia outros na época das suas doações e que, em troca, recebe um prazo maior de vida. Ela tem em mente que esse prazo não duraria muito e, assim, ela precisa aprender a lidar com a morte aonde quer que esteja. Aos poucos, ela vai refletindo acerca da vida e do tempo ilusório, chegando até a se perguntar se sua existência era mesmo muito diferentes daqueles cujas vidas as pessoas como ela ajudaram a salvar. Uma questão sem dúvida pertinente, principalmente quando colocado que a morte é a única certeza que humanos e tais clones compartilham.

Muito mais do que um filme que dialoga com a morte, Não Me Abandone Jamais é sobre a consciência da mesma. Desde que nascemos, ouvimos discursos das mais variadas crenças de que estamos aqui com um propósito, que cada um descobrirá o seu quando chegar a hora. Porém, os personagens carregam o fardo de conhecerem os seus desde cedo, e a cada vez que eles se aproximam de cumprir esse objetivo para o qual foram criados, vida e morte se tornam quase homogêneas.

Por isso, beira ao cruel quando nossos protagonistas ouvem falar numa possibilidade que permitiria que vivessem mais tempo, para logo depois descobrirem que tudo não passava de um boato. A história dizia que quando dois doadores estão apaixonados, lhes é permitido mais tempos juntos, adiando assim seu período de doação. Pela primeira vez, vemos uma fagulha de felicidade verdadeira nos olhares de Tommy e Kathy, que não só estavam livres para concretizar seus sentimentos um pelo outro, como passavam a enxergar uma curva em seus destinos.

A realidade daquelas vidas apontavam para o fim desde o início, mas é a capacidade de viver intensamente e perseverar diante desse mix de certezas e incertezas que nos move juntos como humanidade. É sob essa atmosfera devastadora que Não Me Abandone Jamais promove uma experiência complexa e emocional num filme tão cheio de alma quanto seus personagens “artificiais”.

Não Me Abandone Jamais

Nota: ★★★★✰

 

Ficha técnica

Nome Original: Never Let Me Go

Ano: 2010

Direção: Mark Romanek

Roteiro:  Alex Garland

Elenco: Carey Mulligan, Andrew Garfield, Keira Knightley, Sally Hawkins, Nathalie Richard e Charlotte Rampling

Fotografia: Adam Kimmel

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Evandro Lira

Evandro gosta tanto de filmes que escolheu a opção Cinema e Audiovisual no vestibular, e hoje cursa na UFPE. Em constante contato com a cultura pop, se divide entre as salas de cinema, as aulas sobre Eiseinsten, xingar muito no Twitter e a colaborar com o Clube da Poltrona.

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