Apimentário | E Deus Criou a Mulher

Falar sobre sexo ainda provoca pudor no humano. E nem sempre a sociedade parece estar pronta para o debate dos aspectos da libido. Há filmes que pautam o caráter sexual, mas com argumentos tímidos. Já outros, optam por expor os impulsos carnais sem receios de chocar. É o caso deste clássico lançado no final da década de 1950, quando o cineasta francês Roger Vadim provocou o público puritano da época com uma abordagem polêmica.

Proibido pela Legião da Decência nos Estados Unidosa fita seduziu o público um tanto frígido daquela década ao colocar Brigitte Bardot como símbolo da malícia feminina. A atriz logo se tornou sex simbol do Cinema Europeu por personificar uma mulher liberal, bastante erotizada e de comportamento transgressor; a típica representação da juventude que quebrava todas as formas de inocência e submissão.

E Deus Criou a Mulher é justamente um ensaio cinematográfico sobre o poder da sedução, liberdade sexual e determinismo feminino frente à uma sociedade altamente repressora.

Como compreender que uma mulher permissiva aos desejos pode também amar? Por que a sociedade persiste em criticar a sexualidade tão à flor da pele? Essas são perguntas possíveis ao público enquanto entende a trama: Juliette Hardy (Bardot) é uma jovem órfã de forte beleza e sensualidade. Seu poder de atração é evidente, visto que atrai todos os homens ao seu redor, ainda que não tenha essa intenção. Liberal, cria indisposição com a pessoas da comunidade que insistem em reprimir suas opiniões e comportamentos; atraindo olhares maliciosos dos homens e repulsa nas mulheres que temem perder seus maridos.

Apesar de desejada pelo milionário Eric Carradine (Curd Jürgens), Juliette tem interesse em Antoine Tardieu (Georges Poujouly), mas este ausenta-se de maiores compromissos, apenas quer um envolvimento breve e sem amarras. Vitimada pela comunidade que a enxerga como prostituta e condenada por seus guardiões que a ameaçam devolvê-la para o orfanato de onde veio, a nossa protagonista afunda-se no desespero. É quando Michel (Jean-Louis Trintignant), o irmão mais novo de Antoine, a pede em casamento.

O casamento, que parecia uma possibilidade de resolução para os problemas de Juliette, torna-se um elemento menor de discussão, visto que o roteiro trata de expor maiores provocações: a dificuldade de se “padronizar” à posição de mulher comum é visto quando ela passa a ter compulsão por sexo, desejando outros homens e indispondo-se com afazeres domésticos.

Como viver como dona de casa ou fiel ao matrimônio, sem práticas sexuais com desconhecidos e que prejudiquem a noção da fidelidade? Roger Vadim exibe a intolerância de uma mulher contra a repressão. Através da libido despudorada de Juliette, que nunca se satisfaz, nem parece estabelecer um senso de afeto sentimental com Antonie, vemos a trajetória de alguém viciada no sexo. Em função disso, percebemos a insistência do diretor em acentuar todas as curvas de Brigitte Bardot, colocando-a como objeto de desejo e libertinagem; uma ninfeta sedenta por prazer que consegue deixar os três homens da trama ensandecidos por ela. O olhar um tanto machista da direção é nítido na forma como contorna as ações. Assim, inúmeras cenas exploram o apelo sexual no intuito de fazer com que o público realmente perceba — ou se excite com — a vocação maliciosa da protagonista.

Logo na primeira sequência da fita, há um take de grande insinuação libidinal: atrás de um lençol branco, Bardot aparece nua e com as coxas à mostra em posição sedutora, sob o olhar desconcertado de Jürgens que a enxerga como um animal no cio, prestes a ser devorada. A representação do sexo é crua, de acordo com os instintos carnais dos personagens. Vadim mostra que a intenção de seu estudo cinematográfico é pautar a sensualidade humana.

Por vezes, a abordagem do roteiro parece condicionar a protagonista à posição de ninfomaníaca, nos remetendo aos trabalhos criados por Lars Von Trier. Entretanto, não há uma reflexão maior em cima desta problemática. Vadim acentua a postura sexy de Bardot porque quer construir um filme temático sobre sexo, mas não sobre a filosofia psicológica que reside por trás da figura feminina. O caráter da fita é quase um soft porn, mas com leves contextos dramáticos em torno dos personagens. Por isso, há momentos que a trama investe num olhar mais melodramático, no qual a fraqueza de Juliette parece convincente, tornando a personagem menos unidimensional. Não seria apenas uma mulher em busca de orgasmo, mas de sonhos?

A canção “Dis-moi Quelque Chose de Gentil”, da cantora Solange Berry, toca durante todo o filme e caracteriza bem a personalidade sonhadora da protagonista que, no final das contas, queria ser compreendida por desejar e amar demais. A fotografia prioriza bem a figura solar da fogosa Juliette, com inúmeros takes em tons de vermelho. Apesar da ótica sexual em cima da personagem feminina, a obra consegue promover uma reflexão sobre o papel da mulher em busca do direito ao prazer sob os terrenos do falso moralismo social. E nisso, o filme encontra seu maior atrativo.

Nota: ★★★✰✰

Ficha Técnica:

Et Dieu… créa la femme

Ano: 1956

Direção: Roger Vadim

Roteiro: Roger Vadim, Raoul Lévy

Trilha Sonora: Paul Misraki

Elenco: Brigitte Bardot, Jean-Louis Trintignant, Curd Jürgens, Christian Marquand

 

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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