Brazuca | O Som ao Redor
“Por causa de uma cerca”. Lamenta um dos personagens no desfecho. O descontentamento na fala está ligado a um fato passado que retorna para assombrar as memórias do velho Francisco Oliveira, o patriarca que dita as regras em um bairro suburbano de Recife. Embora não seja mais um fazendeiro, ele continua a exercer seu poder como um imperioso senhor de engenho, puxando cordas, por exemplo, para proteger seu neto delinquente Dinho — um dos sutis significados sobre a problemática racial no Brasil e sua estrutura na hierarquia de classes.
O que Francisco fez há três décadas não é declarado, mas desse enigma surge a metáfora. A equipe de vigilância promete proteção à vizinhança, mas esconde um plano de invasão territorial, onde os eventos do passado irão romper a paz de espírito prometida aos cidadãos. O reprimido retorna para reprimir.
Tudo em “O Som ao Redor” está interconectado, de uma forma ou outra. A fala citada acima está ligada a boa parte das referências metafóricas e visuais. Imagens isoladas de fechaduras, barras de ferro e grades que implicam um mundo de apreensão e territorialidade. Todos esses enquadramentos transmitem a ideia de que os moradores estão presos por aquilo que deveria protegê-los.
Esse empilhamento urbano gera um sentimento de que os personagens não podem escapar totalmente do passado ou do ambiente atual, e a presença dos vigilantes noturnos não ajuda a aliviar a angústia psicológica e paranoias que persistem por entre casas e becos.
A alegoria política de Kleber Mendonça Filho segue presente na figura dos muros e prédios que separam pessoas de acordo com sua classe social. A própria especulação imobiliária é escancarada aos olhos do espectador, através de pontos da narrativa e cenas isoladas. Um conjunto de pequenas residências são espremidas por arranha-céus; a antiga casa de uma das personagens será demolida para a construção de um novo prédio. Há sempre algo mais forte incidindo sobre o mais fraco. O passado ressoa na atualidade.
Como o título sugere, Kleber coloca grande ênfase no design de som de seu filme, construindo cuidadosamente uma colcha de retalhos com os personagens para usar o recurso como forma de representar a relação entre os moradores. Muitas vezes, o silêncio é substituído pelo ruído para simbolizar a impossibilidade de comunicação. Sob os sons cotidianos da vizinhança, o latido incessante de um cão atormenta a vida de uma dona de casa entediada, que procura alívio num baseado com música alta e consolo sexual no intenso centrifugar de uma máquina de lavar roupas.
Semelhante à própria natureza das ondas sonoras, as ações de cada personagem ricocheteiam as paredes e atravessam azulejos, aproximando os vizinhos das formas mais inventivas possíveis. Tal proeza sonora se dá pela sintonia entre Filho e Pablo Lamar, o designer de som do longa.
Embora a grande maioria dos acontecimentos da história pareçam bastante “normais”, é nítida a sensação de que alguém está constantemente assistindo. Tal sentimento pode ser sugerido por cenas em que os personagens se comunicam ou compartilham olhares nos arredores dos apartamentos, espiam pelas janelas ou sacadas. E, por mais ensolarada e alegre que pareça, a rua e seus moradores carregam um peso com eles.
Há algo acontecendo, mas que não fica implícito. Algum fato assombrando o passado, o que empresta ao filme sua qualidade de suspense: um menino com vestes de escravo surge no corredor de uma das casas do subúrbio; o som crescente de uma antiga fita de terror viaja pelas ruínas de um cinema escondido na mata; dentro do pesadelo de uma criança, um bando de pessoas invade a casa; a água da cachoeira se torna sangue, simbolizando a matança no sitio do velho Francisco.
Assim, surgem um acúmulo de informações que se constroem através das interações sociais que carregam fortes implicações de violência. Cada pessoa se torna responsável por suas ações no presente, enquanto crimes passados podem voltar (e finalmente punir) aos culpados, como um eco vingativo através do tempo. Passado e presente conectados por ações atemporais.
E aí que reside o coração do filme: uma teia de interações entre classes sociais em uma sociedade que está tentando avançar, mas que esquece das injustiças de seu passado. Em um bairro movimentado, em constante crescimento, devemos nos perguntar: “sobre o que esta riqueza está sendo construída?”.
Nota: ★★★★✰
Ficha Técnica:
Título original: O Som ao Redor
Ano: 2012
Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Gustavo Jahn, W.J. Solha
Fotografia: Pedro Sotero, Fabricio Tadeu
Edição de Som: Pablo Lamar
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