Apimentário | Escravas do Desejo

Logo no início, observamos um casal que transa de forma selvagem, sob uma luz azulada, em um quarto de um trem em movimento. A situação da libido é exposta em poucos minutos, após a abertura do filme. Assim, o espectador percebe que a intenção deste trabalho é promover uma exposição sobre os meandros do sexo.

Dirigido e coescrito pelo cineasta belga Harry Kümel (do cultuado Malpertuis), Escravas do Desejo trata-se de um horror erótico que influenciou obras de George Romero e Tony Scott (Martin e The Hunger, respectivamente). A trama gótica que mistura mitologia vampiresca e violência, além da sensualidade dos personagens, conta uma situação aparentemente simples.

Os jovens recém-casados, Stefan (John Karlen) e Valerie (Danielle Ouimet), partem em lua de mel para Alemanha, hospedando-se em um hotel de aparência fúnebre e aparentemente abandonado em pleno inverno. Compreendemos de imediato que o casal busca, além da tranquilidade, ter mais privacidade para a prática do sexo; uma intimidade a dois que precisa ser vivenciada.

Kümel nos induz, sem delongas, ao universo da sensualidade de sua trama enquanto destranca provocações mais tenebrosas. É quando surge em cena a Condessa Bathory (Delphine Seyrig, ardilosa e imponente), acompanhada de sua amante Ilona (Andrea Rau). A sequência em que ambas aparecem é bem delineada: o casal protagonista permanece sentado mais ao fundo, tomando café em uma ampla sala; enquanto a câmera exibe em perspectiva a dupla de mulheres, dispostas mais próximas às lentes, como dois espectros que atraem a atenção dos demais personagens, e do espectador também.

Quem são aquelas mulheres misteriosas e de aparências lúgubres? Quais os interesses que existem por trás de suas intenções? São perguntas possíveis.

“O medo me atravessa enquanto a noite morre”.

Compreende-se que a tal Condessa é, na realidade, a figura mitológica da mulher que foi acusada de matar mais de 600 virgens em séculos passados. A lenda dizia que, em busca da juventude eterna, a tal “condessa Drácula” se banhava com o sangue das mulheres para ser imortal. Trazendo esse contexto para a trama, Kümel centra sua narrativa em uma condução de mistério e perversão.

No hotel de aparência mórbida, como um elemento fantasmagórico à la O Iluminado de Stephen King, a fita coloca o público em duas situações: primeiramente, a influência libidinal que a condessa exerce na harmonia do casal. Bathory passa a praticar uma espécie de jogo massivo, fazendo com que Stefan não só a deseje, mas que tenha tesão por sua companheira também; enquanto cresce nele um instinto cruel, uma atração pela morte (algo potencializado com os estranhos assassinatos de mulheres que passam a ocorrer na localidade). De homem afetivo, transforma-se, aos poucos, em introspectivo e agressivo com a recém esposa.

O segundo aspecto tratado no filme, a noção de que todos os personagens parecem fadados ao sexo. Para Kümel, todos são permissivos à libido. Assim, vemos a Condessa Bathory que deseja o casal (um elemento dúbio, já que, na realidade, poderia ser uma forma da vampira subjugar o mortal com seus poderes carnais); temos o envolvimento de Stefan com a sombria Ilona (acentuando o tema da infidelidade conjugal na trama); além do fascínio que a própria Valerie parece nutrir, sutilmente, pelas figuras femininas que tentam aliciar seu marido para a posição de luxúria. Todos os personagens querem experimentar o sexo.

“A morte e o desejo te seguem de um lugar a outro”.

Por ser um filme de erotismo, não só o roteiro se preocupa em extrair dos diálogos e condução dos comportamentos dos personagens o tal clamor do desejo. A disposição dos elementos cênicos e direção de arte encontram um ponto de simbologia: a cor vermelha parece ser uma analogia à intenção sexual e violência.

Por exemplo, o barco em que o casal passeia pela cidade, logo no primeiro ato; os casacos de alguns dos transeuntes que compõem as cenas; as janelas e fachadas das casas, todas trazem elementos de cores rubras. A tonalidade também está presente no roupão de Stefan, um símbolo do horror visual; uma analogia à trama sangrenta que vai sendo descortinada.

A montagem, inclusive, utiliza-se de uma dinâmica interessante que se associa à cor também. Cada bloco do ato se inicia com uma tela vermelha (como Ingmar Bergman fez em Gritos e Sussurros), um enquadramento de horror que condena a todos à teia de libido e morte.

Há uma cena em especial que demarca essa noção da cor como referência ao sentido de morte versus tesão: o casal observa uma maca que sai de um alojamento, no qual um corpo de uma jovem se encontra encoberto por uma manta vermelha, quando um dos moradores diz a Stefan que ali jaz uma das vítimas da onda de assassinato que assola a região. E Kümel provoca o espectador, ao colocar Stefan fascinado pelo corpo morto feminino, enquanto tenta ser masturbado por Valerie que parece excitada com o marido diante da revelação grotesca.

Ainda que perverso e malicioso em sua concepção, com inúmeras cenas de nudez (principalmente dos atores Andrea Rau e John Karlen), Escravas do Desejo não pode ser considerado um soft-porn ou mesmo um filme de horror sangrento. Sabe-se que Kümel tinha o intuito de fazer uma obra ainda mais densa, algo atenuado em função de decisões dos produtores. Entretanto, não tiram os méritos dessa fita que tem sido cultuada pelos fãs de terror e admiradores de obras com doses de erotismo.

Nota: ★★★

 

 

 

Ficha Técnica

Título original: Daughters of Darkness

Ano: 1971

Direção: Harry Kümel

Roteiro: Harry Kümel, Pierre Drouot, Jean Ferry, Manfred R. Köhler, J.J. Amiel

Elenco: Delphine Seyrig, Andrea Raul, John Karlen, Danielle Ouimet

Trilha sonora: François de Roubaix

 

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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