Fotogramas | Ela

 

Theodore e Samantha. Um romance que nasceu da solidão. Uma relação que oscila entre descobertas e dependência emocional. Após a fase da “lua de mel” de início do relacionamento, o roteiro de Spike Jonze (também diretor do longa) nos leva ao momento em que os amantes tendem a começar a se acomodar. Não apenas isso: Samantha, o sistema operacional de voz rouca e sedutora (Scarlett Johansson), está crescendo — quer explorar o mundo, aprender coisas novas, preencher cada vez mais o seu já vasto repertório de informações. Já o personagem vivido por Joaquin Phoenix, Theodore, parece ir num fluxo contrário, tomado por uma sensação de posse absoluta. É como a expressão usada pelos falantes da língua inglesa para descrever o distanciamento entre um casal: to grow apart — numa tradução bem literal, “crescer distantes”, em direções opostas.

O trecho da escadaria do metrô em Ela: um diretor com menos personalidade e um ator de talento inferior jamais conseguiriam entregar uma cena tão cheia de significados com “pouco” impacto visual. Jonze fez o que seria apenas um momento triste e banal subir de patamar. A câmera é trabalhada quase que o tempo todo sobre as expressões de Joaquin Phoenix. Seu rosto conta a história, completando o diálogo que ouvimos dos personagens.

Operating system not found” / “Sistema operacional não encontrado

Ao tentar contato com a amada e não ter sucesso, Theodore entra em desespero. Sai correndo pela rua, quase em pânico, como se fosse conseguir encontrar uma Samantha de carne e osso em algum lugar. Claro que o espectador sabe que ele está correndo para casa, para seu computador, na esperança de o sistema estar funcionando por lá. Mas o desespero com que Phoenix corre passa perfeitamente a impressão de um homem que mal sabe para onde está indo ou onde pretende chegar. Aqui, é ele quem está no modo automático.

O homem aliviado quando finalmente consegue falar com sua amada logo dá lugar a expressões confusas e desconcertadas. Ele sabia que Samantha participava de um think tank, uma espécie de grupo para reflexões e ideias, mas… havia mais? Outros grupos? É quase visível a bolha do personagem estourando enquanto se dá conta de que existem tantas pessoas e SO’s.

Pior: saber que Samantha está explorando o mundo faz com que Theodore sinta que a “namorada” está escorregando por entre seus dedos — ou, para bons entendedores: saindo de seu controle. Ele começa a olhar em volta. Observar o que se passa ao redor não é uma prática muito usual na realidade que nos é apresentada em Ela, onde pessoas andam nas ruas tão imersas na sua realidade virtual/digital que não notam umas às outras. A expressão do homem entrega que mil pensamentos estão cruzando sua mente; um bombardeio de emoções envoltas em insegurança. Há a expectativa, e a descoberta vem como um soco no estômago. Samantha está se comunicando com outros 8.316 indivíduos naquele momento, entre pessoas e inteligências artificiais.

Quando ela lhe diz isso, ele novamente varre com o olhar o corredor da escadaria do metrô onde está sentado, vagando à procura de pessoas com quem a “namorada” possa andar conversando. Indivíduos sobem as escadas, cada um com uma expressão, mas todos com seus dispositivos digitais em mãos. Apenas um senhor mais velho, de semblante carrancudo, parece não utilizar tecnologia naquele momento. Seu olhar cruza com o de Theodore, quase como um lembrete da solidão.

Mais que um balde de água fria, a informação de Samantha parece levar Theodore a refletir sobre o mundo em que vive e no que as relações humanas se transformaram, ainda que os pensamentos durem apenas breves segundos antes de sua atenção se voltar para o ciúme e o sentimento de posse.

Are you in love with anyone else?” / “Você está apaixonada por mais alguém?

Ele toma coragem para perguntar o que certamente não está preparado para ouvir a resposta. Seu semblante é de pânico. De repente, Theodore é o amante traído, incrédulo e confuso. Seu olhar entrega que ele não está mais presente naquele ambiente. A dor de constatar que divide Samantha vai se tornando cada vez mais insuportável, enquanto ele arranca da inteligência artificial mais e mais informações para se afundar em sofrimento.

Por Samantha estar aprendendo sobre sentimentos e interagir em um nível aparentemente bem emocional para um sistema operacional, Theodore espera que ela realmente “sinta” da mesma forma que ele. Esquece que, para ela, emoções são apenas informações em um banco de dados.  Samantha garante que o fato de estar apaixonada por outros mais de 600 sujeitos não afeta o que sente por Theodore. E, se antes era ela que não entendia como algumas coisas funcionavam para os humanos, aqui é ele quem se vê na posição de querer compreender como tudo isso funciona para a inteligência artificial. A raiva e a confusão estão estampadas em seu rosto.

But you are mine…!” / “Mas você é minha…!

Vem o pensamento comum do possessivo, independentemente do tipo de relação: acha que o parceiro é dele, pertence a ele, e vai permanecer sempre o mesmo. Esquece que pessoas vivem experiências diárias que lhes conferem certa volatilidade de pensamentos e comportamentos. Imagine sistemas operacionais, que fazem isso sem o lado emocional e numa velocidade muito superior! É claro que aqui estamos falando de uma inteligência artificial. Mas, partindo do pressuposto que Theodore pode se apaixonar por Samantha como se ela fosse humana, não seriam as regras as mesmas de um relacionamento entre duas pessoas? No caso, ele foi realmente traído. Mas já lhe dói o simples fato de Samantha ter “vida própria”. A traição é apenas a cereja do bolo.

É notável em suas expressões que ele se culpa um pouco pela situação. Essa culpa também é um provável reflexo de seu relacionamento anterior, o divórcio e todas as inseguranças que ainda carrega. Apesar disso, Theodore tenta não demonstrar e acusa Samantha de estar sendo egoísta.

I’m different from you” / “Eu sou diferente de você

O argumento de Samantha é lindo, mas talvez mais apropriado para descrever um amor maternal: “… o coração não é como uma caixa que é preenchida. Ele expande em seu tamanho quanto mais você ama”.

Começa uma trilha sonora melancólica, sobrepondo o som de passos apressados na escadaria do metrô que ouvimos por toda a cena — e que nos lembravam que o mundo continuava girando enquanto aquela DR acontecia. É nesse momento que a ficha cai para o redator de cartas e, talvez, para a inteligência artificial também. Eles jamais serão iguais.

“Você é minha ou não é minha”, provoca ele, ao que ela responde: “Não, Theodore. Eu sou sua e não sou sua”.

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Roseana Marinho

Roseana é publicitária e acha que os dias deveriam ter pelo menos 30h para trabalhar e ainda poder ver todos os filmes e séries que deseja. Não consegue parar de comprar livros ou largar o chocolate. Tem um lado meio nerd e outro meio bailarina.

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