Persona | Lee Chandler (Manchester À Beira-Mar)
É difícil confrontar os demônios internos. Mais ainda, é doloroso juntar os cacos quando se quebram no chão das desilusões do destino.
Lee Chandler surge em cena, um zelador quieto e de poucas palavras. Entre consertos de pias quebradas, descargas entupidas ou ventiladores barulhentos, eis que este indivíduo transita na zona da apatia que criou. Nada parece lhe interessar, nem mesmo o trabalho que exerce.
Os primeiros dez minutos de Manchester À Beira Mar exibem a tônica do personagem: um andarilho solitário. O estado de silêncio, a falta de comunicação aparente, o semblante triste. É como se este homem estivesse trancafiado dentro de si, uma espécie de redoma contra a sociedade.
O que habita por trás deste sorriso enferrujado?
Enquanto transita entre bares noturnos, como passatempo para as horas intermináveis de tédio que o consome, Lee trata de arrumar confusão com qualquer pessoa que passe pelo seu caminho; uma estranha forma de expurgar a dor através das pancadas que recebe na face.
Todo esse prólogo, onde a neve cai e permanece visível na ambientação das cenas, como uma analogia ao estado de frieza que envolve a intimidade dele, entra em estado de transformação quando Lee recebe um telefonema: seu irmão tivera um ataque cardíaco e falecera.
“É um dia muito triste”.
Lee precisa retomar para a sua cidade natal. Forçado a voltar para Manchester, eis que o destino trata de providenciar o choque: o reencontro com as cicatrizes de um passado que tentava esquecer. Assim, entendemos sobre os traumas que seu coração guardava.
Pois é, Lee. Retomar as dores do passado é uma árdua respiração, né mesmo? A alma sente, o corpo, mais ainda. São cicatrizes que geram incômodos. E é difícil esquecer certas angústias dentro do peito.
A trajetória deste homem com suas origens, diante do luto do irmão que falecera, e da responsabilidade dos cuidados que seu sobrinho Patrick (Lucas Hedges) requer, acabam por trazer à tona uma turbulência emocional.
Só que ele não demonstra. Ele inibe.
As feridas de Lee surgem em memórias entrecortadas que a narrativa cria para que visualizemos o que aconteceu. Algo bem dirigido por Kenneth Lonergan, que não abusa do melodrama. Ainda que sóbrio, seu filme tem uma dramaticidade bastante densa.
“Ninguém pode entender o que você passou”.
Lee relembra a casa em chamas. O grito desesperado de Randi, sua ex-mulher (Michelle Williams), que clama por seus filhos que estavam dentro do lar já em cinzas. A câmera percorre toda a área da residência, sob os olhos atentos dos transeuntes, focalizando o homem que olha atônito a cena trágica: sob a fumaça, ali jaz Lee. Ou era.
Um ser estático e em choque, na contemplação da vida que acaba de ruir a sua frente.
A dimensão da perda é transmitida pela atuação de Casey Affleck (vencedor do Oscar de Melhor Ator em 2017). Ele entende os dilemas e inquietações deste homem que não consegue se reajustar, nem se recompor, tanto físico quanto emocionalmente. “Eu não consigo superar, eu não consigo superar” é dito exaustivamente em certa cena, em conversa com seu sobrinho, dando a exata angústia que este ser vivencia.
O jeito introspectivo, o olhar abatido que não consegue encarar quase ninguém, as mãos rigorosamente ocultas nos bolsos da calça, a emoção que parece se esconder sob uma casca de rosto impassível e rigidez nos lábios.
Lee é um ser depressivo que exibe as feridas que o tempo não curou.
A voz embargada, como se presa na garganta; as olheiras na face e semblante apático; a postura curvada e o andar devagar, como se houvesse uma pedra nas costas, afundando-o na existência. São elementos criados com cuidado por Affleck para expor a dificuldade de se soltar à receptividade do mundo. Um ser que não consegue mais se sentir acolhido.
Há dois momentos muito difíceis para Lee. O primeiro é quando desabafa para os policiais que o interrogam na delegacia: sob a música Adagio in G Minor, como uma sinfonia de tragédia grega, a câmera se aproxima da face devastada deste homem que perdeu os filhos para o incêndio, enquanto vomita um monólogo sobre as razões que culminaram na tragédia. A exposição do drama ganha força quando ele pega uma arma de um dos policiais, num impulso para um ato de suicídio em vão.
No outro momento, ele reencontra Randi por acaso. “Você não pode simplesmente morrer”, ela diz, enquanto não segura as lágrimas. A conversa frente a frente exibe uma ferida que não foi cicatrizada. A entrega de Michelle Williams é precisa com suas palavras entrecortadas e soluços que se engasgam na voz trêmula. Ali, entendemos que não há retorno: as marcas são eternas. E é impossível para Lee se reabilitar.
“Meu coração está quebrado, eternamente quebrado”, conclui Randi. A câmera exibe dois indivíduos que não se tocam, nem se abraçam, como dois espectros que não podem se reconciliar. Temos o amor despedaçado em uma cena melancólica. Lee quase não a encara nos olhos, muito menos sai de sua rigidez habitual.
Através de Lee Chandler, vemos como é difícil estabelecer em nós o processo de luto. A agonia da saudade e a dor da perda impedem que caminhemos rumo à felicidade. Algumas memórias nos impendem de renascer. E para este homem, os sonhos se fragmentaram em algum lugar do passado, perdidos entre gaivotas que pousaram nos lagos gélidos de Manchester.
Parabéns pelo texto, você conseguiu entrar no âmago do personagem. Também penso que depois de determinadas tragédias, é quase impossível seguir em frente. Lee só estava vivo fisicamente. A sensação de não pertencer a mais nada era tão grande que ele tentava brigar, sentir dor física, numa tentativa inconsciente de vislumbrar o que restava de sua alma. Da sua gélida alma. Ao mesmo tempo, era um certo “conforto” ele não precisar confrontar com o seu passado. “Conforto” esse que foi quebrado pela morte do irmão.