Brazuca | Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976)

 

O nordeste brasileiro é uma região de extremas riquezas naturais, como também é local de nascimento de diversos artistas importantes para o país; e a Bahia pode ser considerada um dos principais estados a serem o berço de gênios como Jorge Amado (autor do livro em questão), Caetano Veloso, Glauber Rocha, João Gilberto, Gilberto Gil, Gal CostaRaul Seixas e muitos outros.

O filme se aproxima muito da estrutura concebida pelo livro de 1966: dá-se início com a morte fulminante de Vadinho no carnaval de 1943. Então ocorre um flashback para entendermos a dinâmica da relação de Dona Flor com o falecido para, finalmente, a cozinheira casar com o farmacêutico Teodoro e ser “atormentada” pelo fantasma de seu ex-marido.

A obra é detentora de uma bela recriação de época e sua abordagem que explora tanto o corpo nu da mulher quanto do homem se mostra certeira por justamente entrar em concordância com o viés da trama — que é tupiniquim em todos os aspectos, desde a diversidade religiosa (Iemanjá, Oxum, Iansã, Exu e por aí vai) até a sensualidade dos indivíduos inseridos naquele mundo.

Vadinho (José Wilker) é boêmio, apostador, cínico e lascivo, porém, também é charmoso e completamente apaixonado por sua mulher. Por sua vez, Dona Flor (interpretada por uma jovem Sônia Braga, que pode até não ter todas as características da personagem, mas convence pela sua intrínseca timidez e doçura) se preocupa de maneira constante com as saídas noturnas do marido e guarda dinheiro em locais escondidos para que o mesmo não gaste em jogos de azar, tendo o amor cego e incondicional como única resposta possível para sua aflição por ter um companheiro de tais peculiaridades.

Então, com a morte de seu parceiro, a saudade é um sentimento consequente da protagonista. A sede carnal insaciável (certa lembrança de um momento na cama é iluminada por uma luz vermelha intensa com a clara intenção de representar a paixão) é escondida por um semblante lúgubre e com as roupas negras sempre representando o seu estado de luto, além de combinar com seus longos cabelos.

O passar do tempo (a sensação do decorrer temporal é ineficiente aos olhos do espectador) faz com que o medo de cair em tentação e possuir uma má reputação se faça presente. Com isso em seus pensamentos, a baiana quer se casar para que sua índole fique intacta; então, realiza seu casório com o doutor Teodoro (vivido por Mauro Mendonça). A união entre os dois não poderia ser mais diferente que a anterior: o segundo marido é conservador, pragmático, trabalhador e seguidor de uma rotina que beira o enfadonho, inclusive em termos sexuais.

Apesar de estar satisfeita com o status adquirido e ter tranquilidade em relação ao marido, o manifesto surrealista de Vadinho retrata a contradição interna de Dona Flor. Seus instintos fervorosos superam a razão e a consciência de uma pessoa recatada que preza por sua imagem.

Assim, lentamente a protagonista vai cedendo à sua natureza. Mesmo que não haja uma traição propriamente dita, a direção de Bruno Barreto somada com o roteiro adaptado de Eduardo Coutinho e Leopoldo Serran conseguem, por meio de um tom cômico, transmitir essa ideia de que, no final das contas, somos seres de carne e osso; vulneráveis e prisioneiros de nossas próprias condições, ainda que tenhamos que apresentar para a sociedade uma imagem que nem sempre condiz com o que realmente somos. Como se não bastasse, tudo é pontuado pela bela canção “O que Será (À Flor da Terra)” do gênio carioca Chico Buarque, onde temas como decência, juízo, censura e vergonha são abordadas de forma que se encaixem à narrativa.

Essa contradição (que é o núcleo da obra) ganha sua força máxima em duas imagens: os três personagens principais deitados na cama com o símbolo cristão acima deles e, na cena final, quando a personagem feminina sai da igreja de mãos dadas com ambos maridos — um representando o sexo/desejo, enquanto o outro o prestígio/respeitabilidade.

Flor

E a ironia da história ultrapassa suas telas para invadir a própria realidade do Brasil na década de 1970: vivendo uma ditadura que ainda aplicava a censura (mesmo que não tão intensa e com uma gradual abertura política do país), Dona Flor e Seus Dois Maridos tornou-se um imenso sucesso de bilheteria, mostrando que a vontade do Estado conservador de banir determinadas coisas era o extremo oposto da vontade do povo.

Nota: ★★★★✰

 

 

Ficha técnica

Flor

Ano: 1976

Direção: Bruno Barreto

Roteiro: Eduardo Coutinho e Leopoldo Serran baseado no livro de Jorge Amado

Elenco: Sônia Braga, José Wilker, Mauro Mendonça, Nelson Xavier, Dinorah Brillanti, Mercedes Ruehl

Fotografia: Murilo Salles

Montagem: Raimundo Higino

Figurino: Anisio Medeiros

 

Gostou? Siga e compartilhe!

Jonatas Rueda

Capixaba, formado em Direito e cinéfilo desde pequeno. Ama literatura e apenas vê séries quando acha que vale muito a pena. Além do cinema, também é movido à música, sendo que em suas playlists nunca podem faltar The Beatles, Bob Dylan, Eric Clapton e Led Zeppelin.

jonatasrueda has 66 posts and counting.See all posts by jonatasrueda

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *