Sci-Fi | Filhos da Esperança
Alfonso Cuarón é conhecido por tentar imergir seu publico o máximo possível, e poucos diretores tem a capacidade de chegar a um nível de imersão tão grande quanto o mexicano. Ele se desafia a todo momento, abordando assuntos fortes e que trazem uma reflexão bastante complexa.
A trama se passa em 2027, em uma Londres caótica, quando a humanidade não consegue mais procriar. Com esse plot, Cuarón consegue expandir aquele mundo e abordar diversos outros assuntos, como a imigração, governos totalitaristas e terrorismo. Ao implantar essa variedade de debates tão pesados em um filme, o diretor tem que dosar bem, fazer com que não pareça exagerado. Felizmente o mexicano acerta em cheio na dosagem e tudo soa como o mais natural possível.
A fotografia utiliza uma paleta de cores acinzentada, transmitindo todo o caos e desequilíbrio que a humanidade atingiu. A sensação de que algo pode acontecer a qualquer momento é implantada logo de cara quando vamos pela TV que a pessoa mais nova do mundo foi assassinada por um “fã”, já que nesse futuro, o “bebê” Diego é uma celebridade. Logo em seguida uma bomba explode no café do qual o protagonista tinha acabado de sair. A partir disso, a atenção do público já está conquistada.
A criação daquele universo é minunciosamente pensada, como o moletom que o protagonista veste com a escrita “Londres 2012” remetendo aos jogos olímpicos; grades nas janelas do metro criam um ambiente hostil. Ainda temos uma grande referência ao álbum Animals, do Pink Floyd, que faz todo sentido quando Faron (Clive Owen) vai até uma pessoa que trabalha para o governo tentar conseguir documentos para burlar o sistema. Escrachando a podridão governamental.
A critica social sobre governos que repreendem a imigração está bem clara também, quando entendemos que a Inglaterra é uma das últimas sociedades que ainda possui uma certa estrutura e não foi engolida completamente pelo caos, e todos os dias imigrantes de diversos países tentam entrar para tentar uma vida melhor. É triste fazer um comparativo com nossa realidade atual e ver que isso tudo está acontecendo hoje; todos os dias, pessoas morrem ou são presas ao tentar chegar a um país, tentando fugir da guerra ou miséria.
Um dos artifícios de Cuarón para imergir o público é sua câmera na mão, trazendo mais naturalidade às cenas, criando diálogos simples, e que podem soar até bobos, mas que fazem todo sentido quando são aplicados. Um grande exemplo é quando Faron e Julian (Julianne Moore) brincam com uma bola, descontraídos em um carro e, quando menos esperam, são abordados em uma estrada por dezenas de pessoas tentando para-los onde estão.
Estamos tão imersos naquela situação que realmente somos pegos de surpresa, assim como os personagens. O filme tem três grandes cenas nas quais ficam explicito o brilhantismo de Cuarón: além dessa cena do carro, que é uma grande sequência, com a câmera girando dentro do veículo passando do banco de trás para o da frente — isso é dificílimo já que não temos cortes visíveis; as outras duas se passam sucessivamente, a do parto, que é a experiência que atinge o ápice da imersão da obra e logo em seguida temos a batalha dos soldados contra a resistência.
São momentos chave para toda a história, já que há mais de 18 anos não nascia uma pessoa na Terra e isso é representado da forma mais impressionante possível. Cuarón consegue criar um clima tão tenso durante todo o trabalho de parto, com o seu movimento de câmera que vai passando pelos personagens, ao mesmo tempo que Faron tenta acalmar Kee (Clare-Hope Ashitey). E, sem deixar o público respirar, o diretor já emenda esta cena com a tentativa de fuga dos dois e o bebê em meio a uma batalha cruel, entre o exército e a resistência.
Tudo isso só funciona por um conjunto de acertos. Todo o elenco está muito bem, com um destaque maior para Michael Cane, que transmite uma naturalidade essencial para a trama. Certos no roteiro que faz, junto com o que disse acima, o público acreditar naqueles personagens, aumentando a intensidade de todos os acontecimentos.
Filhos da Esperança nos coloca em um mundo que não está muito distante do atual, explorando nossa humanidade e compaixão, não pegando leve para que tudo ali seja visto como algo para tentarmos evitar. É um exercício social e pessoal que devemos fazer diariamente, para que possamos evoluir e não regredir.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Direção: Alfonso Cuarón
Ano: 2006
Roteiro: Alfonso Cuarón, Timothy J. Sexton, David Arata, Mark Fergus, Hawk Ostby
Elenco: Clive Owen, Julianne Moore, Michael Caine, Chiwetel Ejiofor, Clare-Hope Ashitey, Tehmina Sunny, Danny Huston, Charlie Hunnam
Fotografia: Emmanuel Lubezki
Trilha Sonora: John Tavener
Montagem: Alfonso Cuarón, Alex Rodríguez