Horrorscópio | Louca Obsessão
Não há terror mais provocador quando executado com um apelo psicológico. Ainda mais se temos uma premissa que sabe trabalhar tal temática de forma coerente. Stephen King, um mestre na exploração do sobrenatural, também cria situações que vão além deste senso. A psicopatia, aqui, atingiu maiores proporções numa trama sádica. Louca Obsessão foi originalmente lançado em 1987, tendo adaptação para o cinema três anos depois.
A fita mostra o famoso escritor, Paul Sheldon (James Caan) que, após sofrer um acidente de carro numa nevasca, entra em uma zona caótica de sobrevivência e desespero. Socorrido por Annie Wilkes (Kathy Bates), uma enfermeira que afirma ser sua fã número um, é levado para casa onde recebe os primeiros socorros.
É então que Rob Reiner nos conduz em sua construção de suspense psicológico, onde compreendemos que existe algo mórbido no ar. A tensão é feita em cima da personalidade dúbia e estranha de Annie, uma mulher que se fragmenta, aos poucos, enquanto o roteiro tece sua atmosfera de claustrofobia.
Anne, ao ler os originais do novo romance de Paul, descobre que a personagem principal (daí, o título original, Misery), presente em suas oito obras anteriores, será morta. Assim, uma personalidade, até então oculta, assume as vestes comportamentais dessa enfermeira. Um jogo perigoso se estabelece sem precedentes, doentio e nervoso aos nossos olhos.
Um dos elementos mais interessantes da fita é como é bem adaptada do material literário. O roteiro mantém semelhança com a narrativa dos capítulos do livro, situando o processo da relação psicótica que se organiza em torno de Annie e Paul — o homem imobilizado, sem poder buscar auxílio, refém de uma pessoa que ele nem mesmo tinha dimensão do caráter. Subordinado à fã louca, Reiner nos aproxima desta situação de pânico e hostilidade vivenciado pelo protagonista.
Qual o limite em ser fã e se tornar obsessivo? Até que ponto um fã pode admirar seu ídolo? São perguntas possíveis do espectador em torno da persona de Annie; a figura fanática pelo artista que tanto quer subjugá-lo em seus comandos macabros — algo que vemos, de forma até mais provocadora, no livro.
Praticamente todo filmado dentro do quarto, até para nos submeter a uma sensação de claustrofobia (como King fez, também, em Jogo Perigoso), o cenário passa a ser ainda mais grotesco. Vemos em Annie uma personagem de nuances: por vezes, aparenta ter personalidades distintas ou confusas. Ora é amigável e solícita, ora neurótica e impaciente. Algo bem representado e construído com uma força assustadora de atuação de Kathy Bates. Não à toa, venceu inúmeros prêmios do ano, inclusive o Oscar de Melhor Atriz em 1991.
Através da psicose desta mulher, King nos leva à crítica à idolatria de um ser humano ao ídolo. A dependência do fã e a intenção de possuir seu objeto de fascínio, incondicionalmente. Na personagem da Annie, uma forma de caricaturar esse papel determinante de alguém que sufoca o ídolo, como um sanguessuga. Por isso, prende Paul em sua própria casa, entre o fanatismo e a loucura, criando certos comandos de interações que transfiguram a fita em um senso mais agonizante de horror.
Como é habitual no universo de Stephen King, seus protagonistas transitam entre a psicose e inteligência. E Annie nos fornece essa possibilidade, já que passa a querer alterar os acontecimentos e caráter dos personagens do livro de Paul — mais uma vez, a crítica em destacar o quanto um fã pode prejudicar a ideologia e posicionamento criativo do ídolo, pois se vê no direito de sugestionar e induzi-lo em sua obsessão.
Louca Obsessão, ainda, desenvolve plots paralelos, como o casal de idosos, Buster McCain (Richard Farnsworth, excelente) e sua esposa. Ele, um xerife que investiga o desaparecimento do escritor, disposto a encontrá-lo. E temos uma participação pequena de Lauren Bacall, a editora de Paul, que se preocupa com o sumiço do amigo.
Os personagens paralelos são bem conduzidos, adornados pelo clima cinzento e da atmosfera nebulosa da região que situa essa história lúgubre. Tons frios e azulados da fotografia exploram as paisagens de neve que nos remete a outra obra do autor — A Tempestade do Século, lançado anos depois. Ironicamente, tais personagens secundários nos retiram, levemente, da tensão gradual e da violência crescente dentro do quarto; livres do confinamento da casa e do embate sádico de Annie com Paul.
“He didn’t get out of the cockadoodie car!”
Afinal, ela é uma assassina ou apenas uma louca irracional? O que a motiva? O passado dela é revelado e o espectador consegue compreender algumas de suas atitudes, bem como certos condicionamentos de suas frustrações pessoais — ou sexuais. Existe algo libidinoso por trás dessa obsessão de Anne pelo escritor? As reflexões são interessantes.
Além da direção inteligente de Reiner, o corpo de atores também atinge níveis excelentes. James Caan nos transmite o medo através deste homem à beira do pânico; mas, tendo que sustentar uma aparente calmaria diante de impotência física, com as pernas fraturadas e sem mobilidade. Dentro do apertado quarto e de seu confinamento como refém, as melhores cenas do filme são articuladas.
Kathy Bates, numa personificação meticulosa, alterna sua psicose com momentos irônicos e diálogos que revelam a dualidade de sua personagem. A câmera a recorta com suas expressões ensandecidas, em constantes closes, onde a objetiva cola no rosto para captar toda a composição inspirada que a atriz desenvolve em cena. Nos assusta, provoca raiva e até indisposição.
A maneira como o roteiro de William Goldman acentua o fanatismo, a loucura e também o caráter mórbido da personagem tem cuidados para torná-la crível. Sim, uma situação plausível e real. E a fita não se utiliza da violência sanguinária, ainda que uma cena, em específico, seja aterrorizante; uma forma de expurgar toda aquela tensão psicológica em algo mais assustador. O uso de sangue no terço final simboliza a insanidade deste conto de perversão.
E somente Stephen King para ter essa liberdade de transitar tão bem na loucura humana, através de personagens com impulsos reais e possíveis. Um mergulho na psique e psicose.
Nota: ★★★★
Ficha técnica
Nome Original: Misery
Ano: 1990
Direção: Rob Reiner
Roteiro: William Goldman, baseado no livro de Stephen King
Elenco: Kathy Bates, James Caan, Lauren Bacall, Richard Farnsworth
Fotografia: Barry Sonnenfeld
Trilha sonora: Marc Shaiman
Parabéns pela análise crítica. Sua paixão pelo que faz está explícita em seus textos. Bem articulados, bem argumentados, encadeados de forma coerente. Vi o filme, talvez isto tenha tornado sua análise ainda mais interessante para mim. Mas me projeto na posição de quem não o viu, e suponho que a narrativa tenha despertado o interesse para este que é um grande filme! Seja sempre bem vindo e presenteie-nos com mais frequência!