Descubra um Clássico | O Milagre de Anne Sullivan (1962)

Como já foi dito por aqui em outra oportunidade, linguagem e comunicação são quase sinônimos de vida. Por isso, não é difícil compreender a angústia dos pais da pequena Helen quando, após uma doença misteriosa (hoje acredita-se que foi escarlatina ou meningite), a menininha de pouco mais de 1 ano e meio de idade ficou completamente surda e cega.

Até aqui, o diretor indicado ao Oscar Arthur Penn e o roteirista William Gibson acertam por mostrarem ao espectador, em poucos minutos, o dilema da família que tenta proteger sua filha do mundo, mas que claramente mal dá conta de assim fazê-lo.

Sendo assim, Helen Keller (aqui vivida brilhantemente por Patty Duke) passou os primeiros anos de sua vida relegada a experiências sensoriais limitadas ao tato, olfato e paladar, mas que tinham pouco sentido — inclusive afetivo. Para ela, o mundo não era um local de possibilidades de comunicação. Afinal, seus pais não sabiam estimulá-la ou realmente ensinar nada à menina, nem mesmo o que era certo e errado.

Os primeiros minutos de O Milagre de Anne Sullivan consistem em mostrar Helen se enroscando em lençóis, tentando se locomover e quebrando coisas pela casa. Fica claro que a falta de orientação — o fato de não conseguir prepará-la para o mundo — é frustrante para toda a família, em especial para a mãe e para a própria Helen, que parece se tornar uma criança raivosa, irritadiça.

A mãe ainda consegue usar o tato para se comunicar um mínimo com a garotinha, mas não para educação e estímulo; ao contrário, como se fosse diminuir o sofrimento da filha — e o seu —, Kate (Inga Swenson) a mima como pode. Mesmo quando apronta suas traquinagens, algo instintivo a qualquer criança, Helen não é punida, pois Kate não sabe diferenciar o que é causado pela condição da menina e o que é pirraça infantil.

Quem não conhece a história de Helen Keller pode achar que talvez não houvesse muito o que fazer mesmo numa situação assim no final do século XIX. Mas aqui vai uma informação que o filme não chega a mostrar: Helen se tornou escritora, conferencista e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. Ela foi a primeira surdocega a ter um diploma de bacharel (e era de Harvard). O filme tece um estudo exatamente sobre como se deu o início de seu processo de aprendizagem. E é aqui que entra Anne Sullivan.

Anne (Anne Bancroft, em uma performance que dá para chamar de tour de force) é uma jovem enviada de uma escola para cegas em Boston para ajudar a família Keller. Ela mesma era parcialmente cega e passou por diversas cirurgias. Carregando seus próprios fantasmas, a missão de Anne vai muito além de controlar o comportamento de Helen. Ela entende que, acima de tudo, é importante dar a menina ferramentas para se comunicar com o mundo; saber discernir e expressar as várias emoções que sente. Até o momento, raiva, dor, excitação, divertimento, tudo acabava sendo colocado pra fora através de tapas e violência.

Do seu jeito incisivo, porém despachado, Anne valoriza a óbvia inteligência de Helen, algo que os pais da garota não veem por estarem muito ocupados sentindo pena dela. “É mais fácil sentir compaixão por ela do que ensiná-la algo melhor”, diz Anne, momentos antes de uma das cenas mais incríveis do cinema: a batalha entre aluna e professora na sala de jantar. É uma sequência de quase 10 minutos e que exige fisicamente das atrizes — o tipo de atuação física que era muito usado para comédias até então, aqui entra a serviço do drama. Não é à toa (nem só por essa cena) que tanto Bancroft quanto Duke tenham sido as vencedoras dos Oscars de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante naquele ano.

A cena é forte, incômoda, mas o diretor não subestima o quanto o espectador pode aguentar. Ali, na sala de jantar, todos nós nos tornamos um pouco Anne ou Kate; compreendemos o que cada uma delas sente e a complexidade da situação de Helen. Queremos acabar com aquilo, mas também acreditamos que o que parece impossível é, de fato, possível.

Claro que, olhando aqui no século XXI, pode-se achar que o pulso de Anne era por vezes exagerado e que sua postura parece exceder a aspereza. Mas fazer sua aluna repetir o alfabeto dos sinais ou comer com talheres não seria suficiente. Anne deixa claro que “obediência sem compreensão também é uma cegueira”. Temos, aqui, uma professora que jamais abandonaria sua aluna ou desistiria de sua missão, por mas árdua que fosse. Pelo visto, valeu a pena.

Nota: ★★★★★

Ficha Técnica:

Título original: The Miracle Worker

Ano: 1962

Diretor: Arthur Penn

Roteiro: William Gibson

Elenco: Anne Bancroft, Patty Duke, Inga Swenson, Andrew Prine, Victor Jory

Fotografia: Ernesto Caparrós

Trilha sonora: Laurence Rosenthal

Montagem: Aram Avakian

 

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Roseana Marinho

Roseana é publicitária e acha que os dias deveriam ter pelo menos 30h para trabalhar e ainda poder ver todos os filmes e séries que deseja. Não consegue parar de comprar livros ou largar o chocolate. Tem um lado meio nerd e outro meio bailarina.

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