Sci-Fi | Akira

 

Todos sabemos que filmes são reflexos de seu tempo. Akira é um exemplo perfeito disso, nos ensinando como as pessoas conviviam com o medo e a desordem pública estava a um pavio para explodir. A obra acaba servindo como uma boa base de estudos sociais, já que mesmo sendo lançado nos anos 1980, as discussões permanecem bastante atuais.

A história se passa em Neo-Tóquio, cidade que surgiu após a destruição da antiga capital japonesa durante uma terceira guerra mundial. No ano de 2019, a sociedade está completamente perdida; logo no início do filme ouvimos um jornal falando sobre a reforma trabalhista, greve estudantil, grupos que atacam lojas e saqueiam. Também somos apresentados a Kaneda (Mitsuo Iwata) e seus amigos, que formam um grupo de motoqueiros punks que digladiam pelas ruas.

É interessante notar que a trilha sonora a todo momento dá o tom do filme de forma, a música nunca se torna algo muito evidente em cena, sendo sutil, notamos as mudanças que a história vai sofrendo. Com uma mistura de música eletrônica com sons de instrumentos de corda, temos a sonorização perfeita para aquele universo, em completo caos e desequilíbrio, com a violência se tornando algo cada vez mais presente.

Outra coisa que chama muito a atenção é a estética do filme, principalmente ao saber que todo o cenário da cidade foi feito a mão. Os prédios gigantescos com suas cores neon realizados de forma minuciosa. Isso dá mais vida àquela cidade, principalmente quando Kaneda e seu grupo estão em perseguição em cima de suas motos: é quase a sensação de que os arranha-céus irão engoli-los.

E como não falar da moto marcante de nosso protagonista? Cortando as ruas de Neo-Tóquio com sua cor vermelha, o veículo tão desejado parece que foi feito para ele quase como se fizessem parte um do outro. Tanto que, quando ela é roubada pelo seu amigo Tetsuo (Nozomu Sasaki), ele não consegue ir muito longe e o mesmo diz que precisa de um número x de rotações para continuar, mas fica claro que é quase uma mensagem da própria dizendo “já chega”.

Akira definitivamente não é para crianças. Além dos assuntos já ditos acima, o filme tem uma violência bastante visual. Muito sangue, corpos decepados, violência sexual — tudo isso faz muito sentido, já que Neo-Tóquio está vivendo uma crise insustentável.

Dentro de tudo isso ainda tem um detalhe que faz qualquer brasileiro se identificar imediatamente. A cidade foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 2020. Dentro da obra entendemos que é mais um método político para frear as manifestações contra o governo, o que não é muito diferente do que acontece hoje em dia.

Após Tetsuo sofrer um acidente e ser levado por uma equipe governamental, Kaneda e seus amigos se veem entrar no meio de uma guerra, onde o governo tenta reprimir os manifestantes e tenta alienar a população com a disputa dos Jogos Olímpicos que acontecerão na cidade em um ano; do outro lado temos os rebeldes, que tentam evitar a quarta guerra mundial, expondo o governo e liberando suas armas para que não sejam usadas para mais matanças. Nosso protagonista se vê tendo que entrar ativamente pelo lado dos rebeldes e, junto com o público, começa a entender que tudo aquilo vai muito além de apenas problemas sociais.

Tetsuo é uma das excelentes metáforas que a obra trabalha, o garoto mais jovem sofre um certo bullying dos mais velhos, não é tão respeitado e quer se provar. Quando o mesmo ganha seus poderes através dos experimentos governamentais, se tornando o ser mais poderoso do filme e que acreditam ser a reencarnação da lenda “Akira”, a frustração e a raiva lhe sobem a cabeça, o transformando em um ser perigoso e cheio de ódio, matando cada um que já o maltratou e que fique no seu caminho.

É um grande personagem que divide bem a atenção do público com Kaneda. A sensação é que o filme não para, já que a cada cena algo novo é descoberto sobre a trama que segue por um caminho cheio de simbolismos e críticas pesadas à sociedade.

Os roteiristas Katsuhiro Ôtomo e Izô Hashimoto acertam em cheio ao fazer com que o público nunca saiba mais do que Kaneda, nos fazendo descobrir as coisas aos poucos. Isso dá força à obra, faz com que ela te prenda até o final. O próprio crescimento do personagem não é apressado, tanto que o filme tem pouco mais de duas horas, o que é incomum para uma animação, mas cada segundo vale a pena, principalmente quando chegamos ao terceiro ato.

Ôtomo transformou o terceiro ato em uma verdadeira recompensa cinematográfica, mostrando o ápice do crescimento de Kaneda e Tetsuo. Quando ambos chegam para o verdadeiro embate, parece meio absurdo alguém com tanto poder contra uma pessoa comum, porém, quando nosso protagonista sobe em sua moto, entendemos o que o diretor queria nos passar desde o começo, explorando a força de vontade e a luta de Kaneda pelo que acredita ser certo (mesmo confuso) e indo até o final para tentar acabar não só com uma ameaça, mas para salvar o seu amigo.

Essa batalha se torna ainda mais poética por acontecer no meio das obras do futuro estádio olímpico que vai sendo destruído, assim como a alienação do povo em relação ao governo e religião, traçando uma reta diretamente para a lógica, deixando o fascínio e crenças de lado para focar na razão. Tudo o que é dito nesta obra tem um significado poderoso — lembre-se disso quando estiver assistindo, comparando as metáforas para a época e trazendo para nossa atual realidade.

Akira é uma obra que cresce a cada dia que passa e não deve ser tratado só como uma obra de arte, mas também como um manifesto para a humanidade.

Nota: ★★★★★

 

 

 

 

Ficha Técnica

Ano: 1988

Direção: Katsuhiro Ôtomo

Roteiro: Katsuhiro Ôtomo, Izô Hashimoto

Elenco: Mitsuo Iwata, Nozomu Sasaki, Mami Koyama, Tesshô Genda, Hiroshi Ôtake, Takeshi Kusao

Fotografia: Katsuji Misawa

Trilha Sonora: Shôji Yamashiro

Montagem: Takeshi Seyama

Design de Produção: Toshiharu Mizutani

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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