Descubra Um Clássico | Enigma de Uma Vida (1968)

 

Logo no prólogo, no qual vemos o corpo quase desnudo do publicitário Ned Merrill (Burt Lancaster), correndo em mata aberta, rumo à uma piscina; percebemos a noção que Enigma de uma Vida quer nos transmitir: o mergulho de corpo e alma de um indivíduo.

Em uma tarde ensolarada em Connecticut, a trama exibe o vigor atlético e o físico escultural deste nosso protagonista. À beira dos cinquenta anos, ele diz que precisa retornar a nado para casa. Então, perambula de uma piscina a outra pela vizinhança e localidades, em mansões de velhos amigos do passado.

Frank Perry baseia-se no conto de John CheeverO Nadador — para nos imergir na trajetória um tanto existencial deste homem. Através do sex appeal de Lancaster, seus olhos azuis e o corpo bronzeado recortados por uma fotografia de tons quentes, encontramos um conto sobre desconstrução humana. Ned, rumo ao seu destino e ambiente familiar, nos conta sua trajetória, enquanto percorre cada piscina — fragmentando sua aparente serenidade e felicidade em algo além.

A narrativa coloca Ned em um tipo de “ajuste de contas” com o passado, cicatrizes, mágoas e desejos. Enquanto atravessa as piscinas de cada vizinho, compreendemos alguns laços e mágoas — ferimentos e memórias que expõem ao público uma noção de quem foi aquele homem. Por que ele abandonou a esposa e filhos? O que tornou aquele indivíduo tão distante de sua residência — e matrimônio? São questionamentos visíveis.

O teor dos diálogos, como blocos cênicos teatrais (cada casa que Ned visita, funciona como um monólogo individual), são auxiliados pela paleta de cor acentuada da fotografia que sempre prioriza o tom do azul (o céu, a piscina, a sunga do protagonista e as paletas das residências). É como se aquela exposição de cores azuladas criassem o cenário perfeito de um falso mundo artificial, uma satisfação e prazer que o protagonista não consegue, por fim, vivenciar.

Lancaster nunca esteve tão à vontade. Tanto físico (todas as cenas ele se apresenta, apenas, com uma sunga) e emocionalmente entregue ao personagem. Vemos em Ned alguém que precisou fugir do ambiente familiar para esquecer certas angústias e vivenciar novas possibilidades — como o sexo, elemento crucial em torno de sua personalidade. Ned é movido pela libido.

A insinuação do tesão é sutilmente articulada pelo roteiro de Eleanor Perry (indicada ao Oscar pelo por David e Lisa). A ambientação de cena sensuais que favorecem o movimento de Ned diante das personagens femininas, como o encontro com Julie (Janet Landgard), uma espécie de Lolita que o fascina; a antiga babá de seus filhos. Os dois conversam e há uma aproximação que revela camadas de libido e sentimento. Ned é um galanteador.

O terço final assume uma tensão mais visível, de acordo com o psicológico já abalado de Ned. Assim como o protagonista, já fragilizado, a narrativa assume contornos mais dramáticos. A atmosfera é de claustrofobia. Tais elementos são destacados quando, por exemplo, ele encontra sua ex-amante, em mais uma passagem em que se banha na piscina numa casa vizinha.

Com um texto que nos remete aos clássicos de Tenessee Williams, Ned conversa com Shirley (Janice Rule). Entre confissões e insinuações de sexo, compreende-se uma relação amarga. Vemos nele um matrimônio infeliz, por isso buscava o afeto e prazer com outra pessoa. O monólogo de Rule é forte, uma atuação sincera de uma excelente atriz que potencializa o filme para um patamar de reflexão sobre traição e solidão.

Enigma de uma Vida disseca memórias e solidão, um estudo de personagem com questionamentos sobre a vida e desejos. Um clássico que tem a brilhante atuação de um dos maiores atores de todos os tempos: Burt Lancaster sabia emprestar aos seus personagens uma verdade na atuação, sempre natural e firme em cena. E seu carisma permanece, assim como seus olhos azulados da cor do céu, entre banhos de piscina e reflexões, diante de um homem que só não queria ser sozinho.

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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One thought on “Descubra Um Clássico | Enigma de Uma Vida (1968)

  • 16 de setembro de 2021 at 17:24
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    Excelente texto, assisti ha pouco ou melhor revi, na sky. Um dia, em casa, meu amigo David Cardoso estava vendo minha filmoteca e de repente parou em Enigma de uma vida e raapidamente pediu o filme emprestado. Eu dei o filme a ele. Filme classico, bonito e triste.

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