Horrorscópio | À Beira da Loucura
Este texto contém spoilers!
Os créditos iniciais anunciam: John Carpenter está À Beira da Loucura. E isso não é à toa, afinal, o cineasta nunca fez algo tão absurdo e surpreendente em sua carreira quanto esse filme lançado em meados da década de 1990. A trama nos coloca na vida de John Trent (Sam Neill), um investigador de seguros que foi internado com sintomas de esquizofrenia, mas que afirma que não é louco. E é ao narrar sua história para um terapeuta que o espectador descobre como ele foi parar ali; se havia alguma dúvida sobre a sanidade mental do personagem, ela não é sanada nem um pouco ao decorrer do longa.
Ao se inteirar do desaparecimento de Sutter Cane, um famoso escritor de livros de horror, Trent passa a investigar o caso. E, para isso, adentra de vez no mundo arrepiante criado pelo romancista. A partir disso, coisas das mais surreais começam a acontecer, ainda que o nosso protagonista seja cético o suficiente para não acreditar nelas.
A comparação entre Sutter Cane e o rei do terror Stephen King é inevitável. O próprio filme não deixa passar e faz piadinhas com isso. Ambos carregam as mesmas iniciais, estampam a capa de histórias sobrenaturais aterrorizantes e possuem uma legião de fãs. A diferença aqui é que os fãs de King não têm surtos psicóticos e atacam pessoas e lojas mundo afora, que é o que acontece com os leitores de Cane após ele desaparecer e levar consigo o manuscrito do seu próximo livro, intitulado À Beira da Loucura. Uma crítica evidente ao fanatismo para com figuras famosas por seu papel de “criadoras”.
É a partir disso, aliás, que Carpenter e o roteirista Michael De Luca trabalham toda a temática do papel do “criador” no filme. Seja pelo viés artístico ou até mesmo religioso, o cineasta coloca, durante vários momentos, questões sobre o poder e influência que criações artísticas tem na humanidade. À medida que a história avança, o universo ficcional dos livros de Cane se mistura ao mundo real, o que ajuda À Beira da Loucura a se tornar um ótimo exemplar de metalinguagem até seus minutos finais.
Uma das mais brilhantes sequências do filme, que corrobora que Carpenter é um dos maiores nomes do cinema de horror, é quando, acompanhado pela editora de Cane, Linda Styles (Julie Carmen), Trent viaja em busca da cidade até então fictícia de Hobb’s Ends. Enquanto o homem dorme, a mulher começa a testemunhar aparições na estrada, que confundem não só a personagem como também o espectador. Carpenter explora com muita simplicidade e criatividade os “delírios” da personagem, numa cena que mistura o terror, o suspense e a fantasia.
O estranho e o inquietante tomam conta de toda aquela atmosfera de paranoia, e munido da fotografia paradoxalmente sóbria de Gary B. Kibbe e da inspirada trilha sonora assinada por Jim Lang e pelo próprio Carpenter, o diretor usa e abusa do confronto entre a realidade e o sobrenatural. A sensação de que estamos perdendo o controle junto com Trent só aumenta à medida que ele tenta se livrar de seu destino aparentemente selado.
Demora, mas em algum momento, depois de pescar várias coisas aqui e ali, é possível compreender todo o show de bizarrice e o objetivo do vilão do filme: o artista que usa sua arte como ferramenta para a dominação da terra pelos “Antigos”, monstros da mitologia de H.P. Lovecraft, a maior inspiração para De Luca e Carpenter. E quando Trent se vê como um pequeno instrumento, mas fundamental nesse plano, a sensação de que tudo não passa de um pesadelo não diminui, e o filme caminha para um final que não se esforça muito para dar um nó ainda maior na nossa cabeça.
Com À Beira da Loucura, John Carpenter se prova um realizador multifacetado em seu filme mais insano e inesperado, vindo após uma filmografia de obras bastante diferentes como Halloween (1978), Enigma de Outro Mundo (1982) e Eles Vivem (1988).
Nota: ★★★★✰
Ficha Técnica
Nome Original: In the Mouth of Madness
Ano: 1994
Direção: John Carpenter
Roteiro: Michael De Luca
Elenco: Sam Neill, Jürgen Prochnow, Julie Carmen, David Warner, Charlton Heston, Bernie Casey, John Glover, Peter Jason, Frances Bay
Fotografia: Gary B. Kibbe
Trilha sonora: Jim Lang e John Carpenter