Passaporte | Roma

 

Alfonso Cuarón é um diretor que dispensa apresentações: Ganhou força com E Sua Mãe Também, e Harry Potter e o Prisioneiro de Azkhaban é figurado como o favorito da saga do bruxo por muitos fãs. No entanto, foi a partir de Filhos da Esperança que o cineasta mostrou o lado visionário que tem, além de toda a técnica que possui na direção: planos-sequência magníficos e complexos, como os vistos nas cenas de ação dessa sci-fi mostram o quanto o diretor é hábil e inteligente ao escrever os roteiros. Com Gravidade, ele comprovou o quanto é detalhista, e os aspectos técnicos do filme são imbatíveis. Eis então que o diretor surge com o novo trabalho, talvez o mais pessoal da carreira: Roma.

O Festival de Cannes não é admirador dos filmes em streaming, seus realizadores são adeptos de apreciar bons filmes em tela grande e, por isso, são críticos ferrenhos da Netflix. Intensificou mais essa polêmica em 2017, com o lançamento de Okja e em 2018 não foi diferente. Roma teve o lançamento no Festival de Veneza e, desde lá, vem arrancando muitos elogios. Foi uma aposta certeira da Netflix e pode indicar um futuro de maior qualidade para o canal, assim como uma reconciliação, talvez, com os responsáveis por festivais, com a proposta de lançarem os filmes originais também em cinema, além do conforto do lar.

Roma tornou-se um fenômeno nesse aspecto, ganhando aura de clássico instantâneo para muitos e tem muitas características para tal: é repleto de cenas deslumbrantes dignas de clássicos em preto e branco de grandes mestres, como Federico Fellini ou Ingmar Bergman. E tal obra ter sido comprada pela Netflix indica a preocupação que estão tendo agora em melhorar os filmes da grade, garimpando preciosidades em grandes festivais.

O título do novo filme de Cuarón é uma homenagem a Fellini, mas não se passa na Itália. Roma é um distrito localizado na Cidade do México, local onde o diretor passou a infância. E, por isso, é o trabalho mais pessoal dele, reminiscências de um México de 1970 e uma homenagem à Libo, mulher que criara Cuarón na infância e vive até hoje como parte da família. Libo é renomeada no filme para Cleo, vivida pela estreante Yalitza Aparicio.

A abertura do filme mostra uma longa cena em que a câmera foca o chão, o barulho de água corrente indicando a aproximação e o simbolismo do reflexo de um avião (o primeiro de muitos que aparecerão no filme), que reflete a prisão da protagonista àquela vida subserviente. A câmera sobe e então conhecemos Cleo, doméstica que cuida de toda uma família de classe média alta, nos mais numerosos afazeres: deixa as crianças da patroa no colégio, arruma os quartos, carrega malas e tudo para que os familiares tenham o mínimo esforço.

A rotina de Cleo é acompanhada por uma câmera subjetiva, que utiliza muitos planos-sequência, travellings, e denota uma passividade diante de toda a servidão da protagonista. Mas, o intuito de Cuarón não é fazer um cinema-denúncia: É mostrar o quanto essas mulheres, que moravam com a família eram e são ainda exploradas, não têm um fiapo de esperança de mudanças.

A exemplo de Que Horas ela Volta?, filme brasileiro com temática semelhante, mostrando o papel da doméstica em famílias mais abastadas, Roma segue a protagonista em trivialidades, exemplificação de uma realidade tão comum no nosso país e na América Latina, da diferença entre classes sociais. No entanto, o filme de Cuarón não vai além nesse imbróglio, o que não chega a ser um demérito tão grande. A impressão que dá é que o diretor resolveu fazer uma homenagem a uma mulher tão desprezada, mas que a realidade é a mesma: continuará servindo a família, amada enquanto servir e não como um membro familiar efetivo; que não tem os seus direitos, recolhe-se em desencanto diante da insensatez e indiferença do patronato. Não é aquele tributo apaixonado: é realista, cru e desesperançoso. E omisso nesse aspecto.

Isso não diminui Roma, o diretor contorna com uma narrativa poderosa e repleta de cenas antológicas. A fotografia realizada pelo próprio Cuarón mostra o talento do mexicano, em um trabalho quase certo de vencer o próximo Oscar nessa categoria. Aliás, o filme pode realizar o feito de ser indicado a Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro e vencer nas duas categorias, o que mostra o poder e importância da obra.

Cuarón criou um trabalho de fotografia espetacular e o seu maior feito até então. Há passagens dignas de mestres do cinema, uma aula de mise-en-scène, frames com diversos elementos, todos concatenados, em completa harmonia. Silêncios que dizem muito da protagonista são filmados em completa maestria: a sequência que se passa num cinema, uma revelação ao amante e o silêncio ensurdecedor, mesmo diante da sonoridade de um filme dentro do filme; o prenúncio da indiferença e falta de amor; um incêndio diante da música; o mar desbravado por uma guerreira; um parto doloroso e ultrarrealista; uma aula de artes marciais. São sequências para ficar na mente do espectador. É detalhista até num estacionamento de um carro em espaço tão apertado, as rodas passando por fezes de cães e a posterior reclamação do patrão para com Cleo: “Essa casa está sempre suja!”

O tema da maternidade também é retomado por Cuarón, tão rico para ele desde E sua Mãe Também, Filhos da Esperança e, agora, Roma. Mães perseguidas e partos que dão boas vindas a um mundo injusto e cruel. E há referências à própria filmografia: dois astronautas à deriva lembram obviamente Gravidade e é a auto-homenagem mais explícita. Yalitza Aparicio interpreta uma mulher que sofre em silêncio, em uma performance eficaz e emocionante.

Roma é um filme poderoso com suas imagens, técnicas de câmera e uma narrativa tão pessoal e rica. Embora não vá além nas problemáticas e seja uma homenagem dúbia à doméstica da infância de muita gente além do diretor, é mais um grande trabalho nesse excelente ano de 2018. Um aprimoramento de um mestre cinematográfico em sua mais completa beleza.

 

 

Nota: ★★★★✰

Ficha Técnica:

Roma

Ano: 2018

Diretor: Alfonso Cuarón

Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Nancy García García, Jorge Antonio Guerrero

Roteiro: Alfonso Cuarón

Fotografia: Alfonso Cuarón

 

 

 

 

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Ibertson Medeiros

Graduado em Direito, sempre quis trabalhar de alguma forma com cinema, pois é uma paixão desde a infância. Cearense, fã dos anos 1970, curte o bom e velho Rock ‘n Roll e um cinema mais alternativo e underground, sem tirar os olhos das novidades cinematográficas.

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