Apimentário | Além da Paixão

A permissão para o sexo. Como se transformar pelo prazer do orgasmo? Em Além da Paixão, temos a mudança psicológica no cerne feminino, através da experiência libidinal. Dirigido por Bruno Barreto, a fita colocou Regina Duarte em cenas sensuais, algo nunca feito em sua carreira. O cineasta vinha de sucessos como Dona Flor e Seus Dois Maridos e Gabriela, Cravo e Canela (com Sônia Braga em destaque da sensualidade), baseados nas obras de Jorge Amado, e O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues. Junto com Antônio Calmon, desenvolveu o roteiro do filme que colocaria a então “namoradinha do Brasil” em um patamar de erotismo.

A trama exibe a trajetória de Fernanda (Regina Duarte), um símbolo da classe média-alta, com seus dois filhos e um casamento padrão. Designer de interiores, aparenta ser feliz na relação que tem. E o roteiro preocupa-se em nos mostrar um pouco do seu microcosmo, assim como a aparência de “fortaleza conjugal”, tanto que os créditos iniciais surgem na tela enquanto a câmera recorta a fachada da casa do casal. Ali, teremos o gatilho inicial para uma possível desorganização psicológica.

Em pouco menos de dez minutos de projeção, a fita incute a aparência da libido: acompanhamos o pesadelo de Fernanda, em uma noite, quando se vê aos beijos calorosos com uma mulher, dentro de um cabaré. A inquietação da protagonista fica latente, já que percebemos que a sua aparente serenidade no casamento, talvez, seja inexistente. Há algo que ela esconde, dentro do âmago. O que inquieta o coração desta mulher? Ou melhor, o que sua sexualidade clama? São perguntas possíveis.

Quando se dirige ao trabalho, a trama injeta uma reviravolta: Fernanda atropela um rapaz, Miguel (Paulo Castelli). Assim, o público conhece a personalidade deste indivíduo: garoto de programa, sobrevive trabalhando em shows de travestis e atendendo homens, após baladas noturnas em São Paulo. O roteiro não esconde a figura que atrai (homens e mulheres) as pessoas através da fala, gestos e olhares maliciosos; um símbolo masculino do fetiche. Tão logo surge em cena, sua posição sexual é exposta: Miguel se relaciona sexualmente com homens de forma ativa, como também sente atração por mulheres. “Eu não dou, eu gosto é de comer”, diz ele, em dado momento.

A insinuação deste seu universo carregado de erotismo vai ser a linha da desorganização na vida de Fernanda. Após a viagem do marido, Roberto (Flávio Galvão), ela parte em busca da identidade do rapaz que mexeu com seus instintos secretos. Então, o cenário de mulher casada e condicionada ao tédio se converte em uma jornada de descobertas e prazeres imoderados. Fernanda se redescobre quando entra em contato com o mundo de Miguel.

Bruno Barreto articula sua fita de forma linear, um roteiro que destranca as personalidades do feminino e masculino, bem como as suas índoles sexuais. Compreendemos que existe em Fernanda a ânsia de conhecer um mundo mais libertino, uma vida de prazer e sensações até então não experimentada; enquanto Miguel, o típico “garoto malandro” que também se envolve com traficantes, mantém a curiosidade em se envolver com uma mulher que não faz parte de seu hábitat. O encontro desses dois indivíduos tão díspares, mas em comunhão com o tesão, torna a narrativa mais envolvente.

O roteiro de Antônio Calmon parece se influenciar das obras de Pedro Almodóvar: o cenário de cabaré noturno; a ótica de personagens boêmios, marginais e sexualizados; arquétipos de travestis e pessoas marginais, fora das zonas da sociedade heteronormativa e puritana. A fotografia de Affonso Beato, com tons avermelhados e contrates de azul e escuro, favorecem a atmosfera erótica — nos remetem aos trabalhos aclamados do cineasta espanhol, como Carne Trêmula, Ata-me ou mesmo De Salto Alto.

Temos um estudo sobre o sexo como forma de exorcismo de um personagem que, até então, tinha permanecido omisso aos desejos reais. A tal libertação hormonal é visível através de Fernanda, bem defendida por Regina Duarte, em uma atuação sóbria e sincera. Sua química com Paulo Castelli é interessante, crível e expressiva, não só nas sequências de sexo. A participação do argentino Patrício Bisso, como um transformista amigo de Miguel, representa um belo papel “Almodoviano” — uma espécie de Agrado de Tudo Sobre Minha Mãe.

Além da Paixão não se preocupa em ter subtramas ou inquietar o público com um roteiro construído com maiores personagens. Seu foco é centrado na relação de desejo e descobertas de duas pessoas. A cena em que Fernanda se entrega à Miguel nos remete aos trabalhos cafonas e underground das pornochanchadas tão habituais na década de 1980 da produtora Boca de Lixo: vemos os dois atores, despidos e à vontade no entrosamento físico; na simulação de um sexo selvagem, ardente e suado dentro de um quarto sujo, à meia-luz. É a maneira plástica de Barreto exibir a sua reflexão sobre os meandros do desejo e das vozes sobre as ânsias carnais. Nesse sentido, o filme dialoga com o imaginário mais secreto popular.

Nota: ★★★✰✰

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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