Horrorscópio | Eclipse Total

 

Uma cena de horror que se constrói dentro de memórias familiares. Um cenário de dor e aflição protagonizados por mãe e filha. Uma história marcada por rupturas e angústias que se fragmentam aos olhos do espectador. Como falar sobre traumas que são como cicatrizes eternas?

Em 1992, Stephen King lançou o seu primeiro romance escrito completamente em primeira pessoa e sem divisão de capítulos — elementos estilísticos utilizado em Cujo, anos antes. Tido como um dos seus maiores trabalhos de senso psicológico, este thriller literário logo foi adaptado para as telas pelo roteirista Tony Gilroy (criador da franquia Bourne). A direção ficou nas mãos de Taylor Hackford (posteriormente, faria maior sucesso com Advogado do Diabo).

Diferente do livro, Eclipse Total investe em um olhar da terceira pessoa, sem narração em off. Dolores Claiborne (Kathy Bates) se encontra isolada e solitária numa ilha, na cidade no Maine. Logo no prólogo, há uma cena que exibe um crime que ocorre: a rica Vera Donovab (a excelente Judy Parfitt) cai da escada após discutir com Dolores, e morre subitamente — a cena não expõe nada, apenas ouvimos as vozes das duas mulheres em discussão calorosa. A tensão coloca o provável assassinato que gera dúvida ao público: será que nossa protagonista matou outra pessoa? O que ocasionou tal situação?

Hackford remonta a intimidade dessa personagem feminina, assim compreendemos o que se passa por trás de tal crime. Em cena, surge sua filha, Selena (Jennifer Jason-Leigh), em outro cenário narrativo — uma jornalista consolidada em New York. O crime chega ao seu conhecimento e o conflito se estabelece de duas maneiras: como profissional, teria que investigar o assassinato para escrever uma matéria; como filha, precisa retomar à antiga cidade para entender o que se passa com sua mãe.

Através da fotografia dessaturada de Gabriel Baristain — que utiliza de paletas frias com tons azulados —, entramos na zona desconfortável da relação entre passado e presente de mãe e filha. A narrativa vai e volta no tempo, remodelando as personagens através de suas memórias. Quando Selena entra na cidade, alguns segredos macabros vêm à tona. A montagem de Mark Warner (indicado ao Oscar por Conduzindo Miss Daisy) proporciona uma ótima interação das memórias entre as personagens, com flashbacks que fluem e ajudam na imersão.

Como obra de Stephen King, alguns elementos sinistros são expressos, embora sob uma história de cunho dramático. Existe um viés mórbido e sangrento por trás dos personagens. Em Dolores, um passado marcado por segredos violentos e sangue que maculou o seu cotidiano de mãe e esposa — nos flashbacks, vemos a relação destrutiva que ela tem com seu marido (David Strathairn), indivíduo abusivo, machista e que a oprime com violência, físico e psicológica. Através dessas cenas, relembrada pela protagonista, compreendemos o seu universo de medo.

O que torna Eclipse Total no calibre de thriller é o flerte com o horror, algo que vem da construção do passado em torno da figura de Dolores. Ainda que feminista e com diálogos que promovem uma reflexão sobre a posição da mulher — a busca por independência e liberdade de quem sofre nas mãos do marido violento —, a fita insere pistas obscuras no decorrer da projeção. É quando sabemos que a protagonista não apenas teve um passado violento, como vivenciou situações dignas de um pesadelo: a sequência em que Dolores revela como se livrou do marido — e os porquês de ter cometido tal atitude — é bastante nervosa e visualmente bem dirigida. Vemos a atriz posicionada para a câmera, enquanto atrás se forma o tal eclipse do título brasileiro. Uma representação à transformação de Dolores contra um marido que a amordaçou durante anos de sofrimento.

A direção de Hackford investe na ambiguidade da trama, brinca com perspectivas e assume algumas surpresas no terço final, ao exibir a faceta mais cruel de uma humanidade sem escrúpulos. Além da bela atuação de Bates, que assume a complexidade desta mulher atormentada, Jason-Leigh também se destaca — a filha que inibe algumas mágoas e questões do passado que, por sua vez, são tenebrosas. São cenas obscuras, de diálogos densos, por vezes sinistros, sob uma trilha sonora pontual de Danny Elfman.

Sem absolutamente nenhuma situação sobrenatural, embora acentue alguns diálogos no mais perfeito “estilo psicológico do autor” — o implacável detetive Mackley (personificado por Christopher Plummer), por exemplo, lembra alguns personagens irônicos criados por Stephen King. A fita promove o horror nas sutilezas ou em algumas sequências de tensão, mas não puxa para um horror sufocante. Não há grafismo de cenas gore, nem artifício para susto fácil. O terror se faz na própria jornada que descobrimos através de Dolores, com suas nuances e sujeiras por baixo do tapete da existência. E nada mais grotesco que a psique humana com seus segredos e dilemas.

Nota: ★★★★☆

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Cristiano Contreiras

Publicitário baiano. Resmungão e sentimental em excesso. Cresceu entre discos de Legião Urbana e Rita Lee. Define-se como notívago e tem a sinceridade como parte de seu caráter. Tem como religião o cinema de Ingmar Bergman. Acredita que a literatura de Clarice Lispector seja a própria bíblia enquanto tenta escrever versos soltos sobre os filmes que rumina.

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