Persona | Cléo (Cléo das 5 às 7)
A ida a uma cartomante define a persona de Cléo, desde o início do filme Cléo das 5 às 7. Único momento em cores do longa, a cartomante utiliza o tarô para “ler” a vida de Cléo. Sem mostrar os rostos, a câmera de Agnès Varda foca nas cartas e quando mostra as faces das personagens a imagem muda de cores para o preto e branco. A confirmação de uma doença, um câncer, faz com que Cléo saia chorando do local e nas próximas 2 horas do título ela vê a morte por todo canto que passa. E sua aura de mulher rica e mimada vai se esvaindo, aos poucos, quando se depara com trivialidades e com as ruas de Paris.
A atriz Corinne Marchand, no auge da beleza, entrega uma personagem complexa. À primeira vista, uma cantora renomada e talentosa — a futilidade que parece fazer parte da personalidade dá lugar ao aproveitamento das coisas simples da vida, como um passeio de ônibus, uma caminhada no parque e conversa com desconhecidos. A ausência do bondoso marido faz com que Cléo queira alguém mais presente, que se importe mais com ela além do show business, como demonstra pela longa conversa com o soldado, ao fim do filme. A hipocondria da personagem, assim como o possível diagnóstico que ela aguarda, faz com que Cléo saia do pedestal que acreditava estar e passe a observar vidas comuns.
Pessoas conversando em restaurantes, que as observam, notícias de rádio que são mortes sonoras, superstições nas ruas, nada passa despercebido por Cléo. A morte a ronda durante todos os minutos do longa. A Nouvelle Vague representada por Varda expôs a figura da mulher na sociedade francesa. E Cléo simboliza todas as mulheres e suas angústias, crises de existencialismo e dúvidas. Nenhum filme, até então, desse movimento cinematográfico representara tão bem a figura feminina como esse trabalho de Varda. Apesar da diretora não figurar nos grandes nomes da Nouvelle Vague francesa, da Cahiers du Cinéma, ela deixou a contribuição como a mulher forte que sempre foi.
Toda uma vida de glamour, e fama destruídas por uma possível doença maligna, transformam Cléo nessas poucas horas. Ela tira a máscara da frieza, da distância e passa a obter um novo olhar para a vida, fatos que antes não se importava. Temas existencialistas e intimistas na Paris de 1960 são tratados por uma mulher no comando e mostram o quanto o filme era tão à frente de seu tempo. E Cléo passa a se enxergar não mais como uma semideusa, mas como uma mortal. A cena mais icônica do filme é quando ela canta a triste canção Sans Toi, que retrata todo o desespero da personagem. Acompanhada pelo músico interpretado por Michel Legrand, Cléo mergulha numa melodia de tristeza — o seu deserto é invadido por águas marítimas, como as letras da música expõem. A ferida é aberta dentro da personagem, lágrimas transbordam ao fim da execução. Ela não aguenta tamanha pressão psicológica. E isso a transforma numa personagem mais repleta de camadas do que aparenta ter no início.