Descubra um Clássico | O Grande Ditador (1940)
Charles Chaplin era um gênio: isso é algo difícil de contestar. Ao longo da história, muitos comediantes beberam da sua fonte de ideias; apesar de se inspirarem em seu estilo de comédia (e até copiarem), poucos tiveram a coragem e a genialidade do astro inglês.
Um exemplo disso é que, em uma época em que muitos se calavam diante da guerra e outros se juntavam a ela — foi o caso dos diretores John Ford, William Wyler, John Huston, Frank Capra e George Stevens, como mostrado na minissérie documental Five Came Back, disponível na Netflix —, documentando os combates ou ajudando o governo norte-americano a acender nos jovens soldados o sentimento de urgência da batalha, Chaplin teve a audácia de escrever, dirigir e atuar em uma sátira que apontava o dedo diretamente na cara de Hitler.
O Grande Ditador foi o primeiro filme totalmente sonoro e falado de Chaplin, feito em 1940, quando ainda nem se tinha tanta dimensão do estrago que o Holocausto estaria causando. A obra começa com uma sequência da Primeira Guerra, onde um soldado judeu da fictícia Tomânia (nada mais que uma representação da Alemanha) acaba salvando a vida de seu superior. Anos mais tarde, eles se reencontram em lados opostos de uma Segunda Guerra, oprimido e opressor, respectivamente.
A grande sacada do filme é, através da comédia, satirizando uma triste realidade, tentar nos mostrar que o que torna um ser humano digno é sua índole. Seu verdadeiro valor nada tem a ver com crença religiosa, cor da pele ou preferência sexual. Isso se torna claro quando Schultz (Reginald Gardiner) reencontra seu salvador, agora um pacato barbeiro do bairro judeu, e se surpreende: “sempre achei que você fosse ariano”.
Genialmente, além de interpretar o barbeiro judeu (um personagem que carrega mais os traços de seu já icônico Vagabundo), Chaplin dá vida também ao ditador Adenoid Hynkel, uma alusão direta a Adolf Hitler. A partir desse personagem é que o filme toma sua forma mais satírica. Mesmo as figuras a sua volta lembram todo o bando bizarro que vem com chefes de Estado conhecidos por suas tiranias, como foi o caso do alemão: o conselheiro conservador e ambicioso, que aguça ainda mais a megalomania de Hynkel; o chefe do departamento de guerra e armamentos, cheio de ideias malucas e sem sentido; os capachos, interessados em apenas adular o detentor do poder. Até mesmo um líder de uma outra nação que está do lado oposto da guerra, mas é tão cheio de si quanto o tomaniano, é representado ali.
É na pele de Hynkel que Chaplin protagoniza uma das cenas mais icônicas do cinema, a “dança” com o globo terrestre. Essa sequência é um bom exemplo de que a primeira empreitada do realizador com o cinema sonoro foi extremamente bem-sucedida. O uso do som tem um casamento perfeito com os movimentos de sua conhecida comédia física. A cena é quase um balé ressaltando a ganância de Hynkel pelo poder, por dominar todo o mundo. Porém, não é a única oportunidade da obra na qual Chaplin brinca com a sonorização. Algumas sequências no bairro judeu, sobretudo uma na barbearia ao som da Dança Húngara Nº 5, de Brahms, são menos lembradas, mas tão geniais quanto a passagem que mostra o ditador com seu globo.
Outro ponto que torna esse clássico uma obra-prima indispensável é o fato de misturar a usual comédia com sequências realmente dramáticas, que mostram a agonia dos judeus tentando se salvar de alguma forma em um cerco que se fechava a cada dia. Se em uma cena damos risada com o discurso em falso alemão (a forma cômica que Chaplin encontrou de dar a força do idioma sem realmente usá-lo), em outra nos entristecemos ao ver soldados humilhando pessoas na rua, os atos de violência contra inocentes e famílias sendo obrigadas a deixar seu lar para trás.
Os discursos de Hynkel, aliás, são um dos pontos altos do filme, pois ao mesmo tempo em que fazem rir, também criticam e nos fazem refletir sobre o endeusamento a figuras públicas e/ou políticas. Ele recebe aplausos ensurdecedores e gritos de apreço a absolutamente tudo o que fala; é como se aquela grande massa tivesse perdido a capacidade de pensar e tudo o que é dito por seu governante — uma personalidade difícil, gananciosa, porém tão influenciável e teimosa quanto uma criança de 4 anos — se torna lei. Chaplin já nos alertava em 1940 que, obviamente, isso é muito perigoso.
Mas, pelo visto, nós não aprendemos. Em uma época em que o mundo ensaia um retorno a intolerâncias e preconceitos, é sempre bom lembrar do discurso emocionado do barbeiro judeu, que faz tanto sentido hoje quanto fez no passado. Ele diz que “a vida pode ser livre e bela, porém, perdemos o rumo” e que o progresso das máquinas nos afastou uns dos outros (e dos nossos sentimentos), mas lembra: união, amor, tolerância e empatia são o único caminho para a liberdade e para um mundo mais justo. Além da inteligência do roteiro e do apuro técnico cinematográfico, é por mensagens assim que, quase 80 anos mais tarde, o filme ainda é tão pertinente quanto foi em seu tempo.