Apimentário | O Beijo da Mulher Aranha
Hector Babenco será sempre lembrado por esse controverso trabalho. Adaptado do livro de Manuel Puig, O Beijo da Mulher Aranha foi filmado integralmente no Brasil, parte do elenco com astros estrangeiros. O idioma é em inglês, talvez por isso tenha conseguido ser potencializado melhor lá fora, obtendo reconhecimento e indicações nas premiações.
A história centra em dois prisioneiros, solitários e angustiados, sem perspectivas, sob péssimas condições carcerárias. Raul Julia é Valentin, um jornalista preso por suas convicções políticas. O outro, um homossexual condenado por ter transado com um menor de idade. E é nele justamente que o filme centra seu maior apelo: Molina, feito de forma magistral por William Hurt, que levou o Oscar de Melhor Ator, é um ser tolhido por uma sociedade predatória; um indivíduo que se diz preso dentro de um corpo masculino. Seu sonho, ser uma mulher plena, em corpo.
O roteiro investe, logo na primeira hora inicial, na amizade que surge entre esses dois indivíduos tão antagônicos. Seria um desejo que nasce? Ou um aprendizado de camaradagem? Babenco investe no teor intimista, na caracterização de diálogos que remontam as índoles e perspectivas desses dois homens, quase como um protesto sociológico. A crítica à representação homossexual fica mais latente em Molina, quando Hurt nos leva aos trâmites das dores e do preconceito que sofre, através de falas duras e diretas. A vítima que vivencia o papel de estar à margem, da mágoa de não ser aceito, nem compreendido.
Molina é um personagem plural. Ele nos remonta sua trajetória fora da prisão, através de uma narrativa maliciosa, detalhada e dotada de intenções sexuais. Há belas passagens que o roteiro constrói para entendermos essa persona — como quando ele narra algumas memórias, em especial uma experiência que teve com um garçom (interpretado com erotismo por Nuno Leal Maia). A sequência, quase como um tratado no calibre de “cine privê”, coloca Molina envolvendo-se com um homem, numa posição fetichista, em uma jornada de sexo e emoção.
Babenco parece brincar com as percepções do público, colocando a aparência de Molina de duas formas: em algumas cenas, Hurt aparece vestido de mulher, com a voz afeminada, os gestos delicados, quase como imerso na persona feminina que adota; em outras, a aparência máscula, camisa social, cabelos alinhados e um rosto com a barba por fazer. É a forma de nos provocar: aquele personagem, de fato, não tem rótulos sociais, muito menos gênero definido. A palavra transexualidade nunca é mencionada, mas fica a reflexão em cima destas insinuações.
As cenas entre Valentin e Molina, por sua vez, remontam o cenário de sedução velada: ao mesmo tempo que o público percebe que existe um confronto de ideias e cumplicidade, há uma sutileza que permeia na narrativa. Por vezes, Molina parece se sentir atraído pelos posicionamentos políticos, a postura viril e o caráter contestador do seu colega de cela. Através do arquétipo de Raul Julia, quase sempre sem camisa, exibindo o corpo suado, numa posição de “macho-alfa”, o roteiro o coloca na postura de desejo. Já Molina, um homossexual que precisa, mais uma vez, frear suas intenções libidinais, para não se indispor com alguém que aparenta respeito.
Há, além do teor sexual, um subtexto político que se apresenta em cena. A crítica à transgressão social, visto que tanto Valentin (com suas falas altruístas e planos de modificar a corrupção de mundo, através de lutas e idealismos) e Molina (a voz da minoria que acredita num mundo que o acolha, sem preconceitos à sexualidade) são símbolos de uma narrativa que exibe o Brasil em posição de fragilidade e embate ideológico. Lembrando que estávamos num período onde a Ditadura ainda se fazia presente, então a fita não deixa de promover tamanhas relações com os contextos da época.
O Beijo da Mulher Aranha concebe níveis narrativos ao concentrar camadas em seu roteiro. Uma espécie de “filme dentro do filme”, já que Molina, para fugir da sua condição da realidade que o cerca e fere, prefere se imaginar como personagem em seus “contos mentais” — cria e inventa uma espécie de filme para Valentim. É quando somos transportados para uma “realidade alternativa”, uma história de sexo e amor que ocorre na Segunda Guerra Mundial. É nesse recorte que temos a presença de Sônia Braga, como uma heroína romântica, num tom de melodrama intencional, quase uma caricatura fetichista. A intertextualidade criada torna o filme ainda mais intrigante, já que o público consegue perceber que a tal mulher idealizada por Molina, nada mais é que uma forma sua feminina; alguém livre para experiências amorosas com homens e sexualmente libertária, sem amarras social e isenta da opressão.
Braga, que vinha de personagens libidinais, vide Dona Flor e Seus dois Maridos e Gabriela, aqui encarna uma personagem dúbia e sexy. A mulher que povoa as idealizações dos homens e, por sua vez, faz parte da ideia que Molina tem sobre o ser feminino. Uma espécie de espelho, alguém que ele não consegue ser na “vida real”. Um símbolo ao caráter transexual. E nisso, o filme ganha pontos de reflexão além do que pensávamos, tornando-se um trabalho plural e de cunho analítico.
Excelente texto, Cristiano.