Brazuca | Que Horas Ela Volta?
Abordar desigualdades sociais é uma responsabilidade recorrente para cineastas que entendem a função da arte como catalisadora. A violência frenética de Cidade de Deus é um belo exemplo, assim como Tropa de Elite, que também explora a relação da favela – drogas –, polícia e suas consequências. A escritora/diretora Anna Muylaert examina a diferença entre classes sociais de uma forma muito discreta em Que Horas Ela Volta?; uma dramédia doméstica que parte de uma premissa simples, mas ganha força em seu processo, com empatia e desenvolvimento inteligentes dos personagens.
Regina Casé interpreta Val, uma mulher de meia idade que trabalha para uma família abastada de São Paulo, há mais de uma década, se tornando, praticamente, uma segunda mãe para o menino Fabinho (Michel Joelsas). Ela é a conselheira do garoto e o conhece bem mais que os próprios pais, a workaholic Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), um descontraído artista, herdeiro fracassado de uma herança familiar.
Essa prática é colocada a prova quando uma outra figura é posta em cena: Jéssica (Camila Márdila) é o ponto fora da curva que modifica todos os padrões estabelecidos no passado de sua mãe. As tensões entre empregada e patroa são evidentes antes da menina chegar na casa, mas naturais para Val que se sente como a subordinada. Uma vez que Jéssica aparece, esse padrão é nocauteado através de um certo atrevimento, como julgam muitos. “Mas porque tem que ser assim?”
É nesse ponto que o roteiro de Muylaert cresce em qualidade e perspectiva, criando a evolução gradual de suas protagonistas. A insistência e inteligência de Jéssica incomoda Bárbara, que não esperava tal comportamento vindo da filha de sua empregada. Ao mesmo tempo, Carlos vê na menina uma vivacidade e espírito aventureiro que nele já não existe mais, e isso o leva a atitudes extremas que animam algumas das cenas mais desajeitadamente engraçadas do filme.
O tema não é inovador, mas é consistente e envolvente em sua proposta. O elenco é fantástico e coeso como equipe. Camila Márdila entrega a atuação mais segura do longa e de maneira autêntica e natural, joga com todos os elementos que a personagem pede, bem como a generosidade artística com os colegas de cena. Muyleart tem um modo particular e sutil com a linguagem cinematográfica; a representação de uma porta que separa a cozinha da grande sala de jantar é especialmente inteligente em vários aspectos.
A perspectiva que se refere ao direito de pertencimento a determinados ambientes, permite o questionar sobre como elas determinam as funções exercidas, como num tabuleiro de xadrez. Aparentemente ingênua, a cena em que Val “descasa” um conjunto de xícaras é uma representação de nosso status quo. Sem a necessidade de abordar discursos que caricaturam os seus personagens, Muylaert faz um importante alerta sobre algumas posturas ainda enraizadas em nossa cultura e explora o tema da maternidade com ternura e empatia.
O ato de provocar através de uma linguagem simples, mas, ao mesmo tempo, estratégica; um retrato brasileiro, familiar e brutalmente comum a boa parte dos lares da classe média alta; o explorar da relação já estigmatizada entre patrões e empregada; a maternidade e uma catarse resultante do olhar atrevido de uma jovem que vem de fora da cidade; e do tempo dos adultos e seus padrões. Filmes como esse representam o cinema que nós precisamos. Alguém já disse uma vez: “Se a Jessica do Que Horas Ela Volta? te incomoda, então esse filme foi feito exatamente pra você.”
Nota: ★★★★
Ficha Técnica:
Título original: Que Horas Ela Volta?
Ano: 2015
Diretor: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Michel Joelsas
Fotografia: Barbara Alvarez