Descubra um Clássico | O Processo (1962)

 

Orson Welles é um dos maiores artistas que passaram pela face do planeta e sua estreia pode ser considerada como a melhor da história — uma vez que Cidadão Kane foi eleito, diversas vezes, o melhor filme de todos os tempos, inovando e avançando a forma de se fazer cinema como poucos, seja no campo narrativo ou estético.

Chega a ser impressionante, em plena década de 1940, como ele e Soberba possuem uma meticulosa mise-en-scène que dialogaram com um cinema mais autoral (a nouvelle vague talvez seja o melhor exemplo) e, até hoje, com o contemporâneo. O diretor nega, de modo constante, a decupagem e montagem convencional que recorta o tempo e o espaço para, no lugar, escolher a profundidade de campo (o que seria marca registrada na sua carreira) e o travelling para aproximar mais o espectador da realidade da história — tendo como consequência lógica uma exploração mais eficiente dos cenários dentro do belíssimo contraste entre o preto e branco.

Além disso, a linguagem narrativa revigorante e inovadora é tão grande que gera um comprometimento maior com a própria plateia, no qual o aspecto subjetivo e, por consequência, o processo analítico, sejam notadamente mais presentes do que se fosse realizada pelo modo clássico, que era quase um tipo de “guia” para o espectador em relação às respostas.

E, mesmo após os ótimos noir O Estranho, A Dama de Shanghai e A Marca da Maldade (detentor de um plano-sequência inesquecível), Welles faz, em 1962, O Processo — provavelmente o filme mais singular de sua vida, já que abandona algumas das diretrizes anteriormente estabelecidas para se reinventar como artista.

O conto que antecede tanto o livro quanto o filme revela (tematicamente) o que iremos presenciar na jornada do protagonista: um sujeito que não procura explicações razoáveis para o que ocorre, que não contesta o arbitrário e opressor sistema jurídico daquela sociedade. No fim, é um sujeito que sonha com o refúgio, mas sua passividade o sabota, consequentemente, não sabendo a razão de estar sendo acusado.

O viés existente na obra de Kafka que flerta com o onírico é transferido para a película de Welles de maneira brilhante e intensa. O personagem principal é frequentemente visto em ambientes menores que o normal, como também em imensos cenários para retratar sua fragilidade e vulnerabilidade diante do sistema, principalmente em relação às cenas em que envolvem seu trabalho e o próprio tribunal.

processo

Josef K. (interpretado por um transtornado Anthony Perkins) nunca está parado, desloca-se de uma espécie de labirinto para, logo em seguida, sem ter uma lógica coerente, estar em outro completamente diferente. Encontra pessoas que se materializam na tela de forma súbita com um propósito nem sempre tão bem delineado, mas servindo para arquitetar aquele universo distópico e tirano.

O diretor cria planos tortos com a finalidade de emular o surreal, mas também filma memoráveis planos longos para dar a sensação de aflição interminável, onde escolhe o contra-plongée (quando a câmera é posicionada de baixo pra cima, engrandecendo um objeto ou indivíduo) e o plongée (a câmera fica de cima pra baixo) para ressaltar a fraqueza do protagonista diante daqueles que detêm uma posição de poder.

processo
O uso do contra-plongée pelo gênio Orson Welles
processo
O plongée para representar o quanto Josef K. é frágil diante das pessoas e situações

É o pesadelo concretizado não apenas no âmbito visual, como também em sua concepção de roteiro para abordar a tragédia kafkiana — que, em essência, aborda paranoia, explora a complexa moralidade da lei e a estrutura e hierarquia estatal em que todos estão inseridos.

O final que (literalmente) explode seu personagem (Orson Welles afirma, em certa entrevista, que o motivo da escolha é por causa do holocausto) e os capítulos organizados de maneira diferente do livro funcionam. O ciclo bizarro e absurdo vivenciado é tão prejudicial e destrutivo que o personagem, nos últimos momentos, exterioriza uma risada diabolicamente nervosa, porém, repleta de dor e angústia. Eis o último som de humanidade antes da ruína.

De acordo com seus ditames, as adaptações eram necessárias porque qualquer filme é um trabalho original, não podendo ser uma mera ilustração do livro ou de uma peça. São plataformas diferentes que, por mais que possam ter como alicerce outras formas de arte, devem sempre serem independentes entre si.

Mesmo falecido, o lendário artista (com a ajuda da Netflix) ainda teria uma obra oficialmente lançada, onde satiriza os movimentos cinematográficos contemporâneos através de experimentações de luzes, cores e uma montagem febril, além de explorar o conflito entre o passado e o presente; mas isso é assunto para um outro texto.

Nota: ★★★★★

 

 

 

Ficha técnica

processoNome Original: The Trial

Ano: 1962

Direção: Orson Welles

Roteiro: Orson Welles e Pierre Cholot (adaptação do livro homônimo de Franz Kafka)

Elenco: Anthony Perkins, Orson Welles, Jeanne Moreau, Madeleine Robinson, Akim Tamiroff, Michael Lonsdale, Arnoldo Foà, Romy Schneider, Elsa Martinelli, Jess Hahn, Wolfgang Reichmann, Thomas Holtzmann

Fotografia: Edmond Richard

Montagem: Yvonne Martin e Frederick Muller

Gostou? Siga e compartilhe!

Jonatas Rueda

Capixaba, formado em Direito e cinéfilo desde pequeno. Ama literatura e apenas vê séries quando acha que vale muito a pena. Além do cinema, também é movido à música, sendo que em suas playlists nunca podem faltar The Beatles, Bob Dylan, Eric Clapton e Led Zeppelin.

jonatasrueda has 66 posts and counting.See all posts by jonatasrueda

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *