Miss In Scene: Deloris Van Cartier
Deslocada de seu habitat, a cantora Deloris Van Cartier, personagem interpretada por Whoopi Goldberg em Mudança de Hábito (Sister Act, 1992), se vê em uma situação inusitada. Ela é crooner em um cassino em Reno e amante do proprietário, o gangster Vince LaRocca (Harvey Keitel).
Bem despachada e sem paciência para enrolação, Deloris decide se livrar daquele relacionamento tóxico. Sua decisão é executada após ela receber de presente – um pedido de desculpas, que na verdade é um meio de comprá-la –, mas ao entrar no escritório de Vince, ela presencia um assassinato.
Façamos uma pausa aqui, para entender um pouco quem é Deloris e como ela se porta. Na sequência inicial, somos apresentados a uma garotinha, em uma escola de freiras, que é bem debochada com relação às práticas de ensino. A madre-professora pergunta à sala qual o nome dos apóstolos e Deloris responde prontamente “John, Paul, George and… RINGO!”. Neste ponto já temos duas orientações que permanecem durante toda a narrativa: Deloris não é religiosa e é ligada a música.
De volta à vida adulta, mas ainda antes de testemunhar o crime, a cantora e seu amante conversam em um quarto de hotel. Ela o questiona se ele vai se separar da esposa e ele diz que se confessou e que o padre disse que divorciar o daria uma passagem para o inferno. Muito católico, o homem argumenta que não cometeria esse pecado. Deloris se encontra no lugar sociocultural que coloca a mulher negra como objeto de prazer. Esse detalhe da vida da personagem levanta o questionamento sobre a solidão da mulher negra.
Esse papel de ser afetivo não é construído. Sua função na vida daquele cara é substituível. Pela sua expressão e postura ela está cansada daquela situação e assume a postura reativa. O lugar no qual seu amante a coloca é de descartabilidade. Ele a mantém às escondidas, obtém o prazer sexual, não precisa se envolver afetivamente e sequer se importa com isso. Tanto é que a opção de matá-la, por ser testemunha de seu crime, é a primeira alternativa do mafioso.
Após denunciá-lo à polícia local, Deloris precisa ser protegida até o fim da investigação e é escondida no Convento Santa Catarina. Sem afinidade nenhuma com o local, a cantora se vê em uma situação incômoda. Ali ela está privada de seus hábitos, de sua liberdade. Porém, a jornada que a protagonista irá percorrer é a de sair de sua zona de conforto e conhecer a vida de pessoas diferentes.
Sua relação com a Madre Superiora (Maggie Smith) é de conflito. Cada uma se encontra em uma ponta das muitas possibilidades de escolha. É como se fossem duas mulheres, cada uma com seu estilo de viver, julgando a outra por sua escolha. Deloris se transforma em Irmã Mary Clarence, uma freira que veio de um lugar fictício e não tem papas na língua. Para aquietar esse espírito livre da cantora, a Madre Superiora a designa para reger o coral, que é péssimo por sinal.
Ao ter contato com as outras irmãs do convento, Mary ganha novo fôlego e percebe que aquele local, aquela comunidade e aquele ideal de ajuda ao próximo são importantes para elas e para si. Usando de sua prática como cantora “mundana”, Clarence retira a Igreja de seu lugar quadrado e imprime no coral uma boa dose de descontração. Sua regência do coral se aproxima do que vemos nas igrejas protestantes. Ela proporciona, por meio da música, um diálogo entre a Igreja e a comunidade que se encontra afastado do templo e da liturgia.
Sua proximidade das outras irmãs permite que a empatia entre elas cresça e o filme desfecha com Deloris, após ser sequestrada pelos capangas de seu ex, sendo salva pelas freiras. A amizade que se forma a partir da demolição dessa barreira ideológica é forte o bastante para que essas diferentes mulheres se fortaleçam. Essa força é tão intensa que Deloris – que em princípio era uma refugiada sob cuidados das irmãs – se torna parte da equipe e as ajuda a salvar uma escola que trabalha com juventudes de uma área periférica.
Mas essa é história pra outro artigo.
Fico grata por suas palavras. Abraços.