Descubra um Clássico | Inverno de Sangue em Veneza (1973)

A dor e o luto que seguem pais após perderem seus filhos são temas recorrentes em longas-metragens, e com certeza um dos filmes mais influentes nessa temática e que serviu de inspiração para muitos outros vindouros que utilizavam dessa premissa foi Inverno de Sangue em Veneza, principal obra do diretor recém-falecido Nicolas Roeg.

A influência é notória e temos um exemplo recente para ilustrar: Anticristo, de Lars Von Trier, bebeu muito dessa fonte, principalmente pelo início, em que ilustra a perda de um filho por conta da desatenção dos pais. Existem outros elementos que influenciaram a obra de Trier que serão expostos mais adiante.

O começo do filme é basicamente esse: John Baxter (Donald Sutherland) é restaurador de igrejas que está confinado em casa estudando figuras em um slideshow, enquanto a mãe Laura (Julie Christie) tenta explicar perguntas difíceis feitas pela filha Christine (Sharon Williams). Nesse ínterim, numa paisagem idílica do lado de fora da residência, Christine e o irmão Johnny (Nicholas Salter) brincam livremente, até que em dado momento a garota vai pegar uma bola no lago e acaba se afogando. O pai, pressentindo o perigo, corre pra salvar a filha, mas é tarde demais: a garota é resgatada do fundo do lago sem vida.

O filme, então, transporta o espectador para Veneza, como sugere o título brasileiro. O casal aparentemente está bem, mas carrega ainda consigo uma ferida que não fora cicatrizada, no caso, a perda da filha. John foi restaurar uma igreja na cidade e Laura acompanhou o marido. Após encontro inusitado com um casal de senhoras irmãs, tudo dali pra frente mudaria drasticamente a vida dos protagonistas.

O encontro com Wendy (Clelia Matania) e Heather (Hilary Mason) desperta uma esperança em Laura, que estava bastante triste pela tragédia na família Baxter. Ânimo é mostrado no rosto da personagem, ao Heather dizer que viu Christine sentada perto do casal, com uma capa vermelha de chuva, traje que ela vestia quando morreu. O problema é que Heather é cega, mas tem uma “segunda visão”, pois diz ser mediúnica. Apesar da alegria de Laura, John vê tudo isso como charlatanismo e descrença, enquanto tenta terminar seu trabalho na localidade.

O longa é construído sem pressa por Roeg, baseado em uma história da escritora Daphne Du Maurier, autora de Os Pássaros, obra adaptada por Alfred Hitchcock. Acompanhamos o casal dentro de outra grande personagem do filme que é Veneza. A cidade foi uma locação perfeita para situar todo o misto de sensações que os personagens sentem, como a obscuridade do luto e o labirinto de mistérios que os envolvem. Os complexos corredores escuros que fazem parte da localidade italiana sufocam os protagonistas, assim como o espectador. Misteriosos assassinatos acontecem, enquanto tentamos descobrir se o fato de Heather ser médium é verdade ou mentira.

O diretor constrói a narrativa de maneira densa, além da cinematografia que extrai beleza e incógnita dos prédios submersos. A belíssima trilha sonora de Pino Donaggio é sempre presente e faz parte de um dos belos momentos do filme: a polêmica cena de sexo entre Laura e John. É tão realista que muitos se perguntaram na época se era real, não encenada. No entanto, não é crua e gratuita: ilustra um momento de amor no casal afogado por desesperança. A trilha de Donaggio, junto à excelente montagem de Graeme Clifford, mostra momentos após a transa e casa perfeitamente na poética sequência de sexo. Aí que se encontra outra influência que Lars Von Trier pegou para fazer o início de Anticristo: unir sexo, com música e a perda familiar.

As atuações são impecáveis: Julie Christie, no auge da beleza, interpreta uma mãe que ganha um ar de esperança, após o contato espiritual — tenta obter sentido para toda a tragédia, enquanto Donald Sutherland é mais cético ao aspecto sobrenatural. Encomenda um trabalho para a igreja, mas através de sinais vai aos poucos sendo desafiado por visões que confundem o personagem.

É o tipo de filme que nunca é previsível, apesar de todas as pistas contidas na narrativa lenta propositalmente. A morte ronda toda a cidade, de uma maneira pouco vista em longas-metragens. Apesar do desfecho sinistro e surreal, é um trabalho que não assusta, mas que perturba o espectador após o término. Toda a aura de mistério e morte geram desconforto. Embora o título brasileiro seja forte, o que vemos no filme não é um banho de sangue, o que pode dar impressão errada a quem assiste esperando isso. O filme desafia nosso sentido mais traiçoeiro que é a visão. “Não olhe agora” — o título original quer dizer que devemos observar com atenção tudo que é mostrado em tela. Um clássico que merece ser visto e revisto, a fim de destrinchar todas as pistas contidas ao longo da narrativa.

Nota: ★★★★★

Ficha técnica

Nome Original: Don’t Look Now

Ano: 1973

Direção: Nicolas Roeg

Roteiro: Allan Scott e Chris Bryant, baseado em história de Daphne Du Maurier

Elenco: Donald Sutherland, Julie Christie, Hilary Mason, Clelia Matania, Massimo Serato, Renato Scarpa, Nicholas Salter, Sharon Williams, Adelina Poerio

Fotografia: Anthony B. Richmond

Montagem: Grame Clifford

Trilha Sonora: Pino Donaggio

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Ibertson Medeiros

Graduado em Direito, sempre quis trabalhar de alguma forma com cinema, pois é uma paixão desde a infância. Cearense, fã dos anos 1970, curte o bom e velho Rock ‘n Roll e um cinema mais alternativo e underground, sem tirar os olhos das novidades cinematográficas.

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