Miss in Scene | A (des)união entre mulheres em A Malvada
Em A Favorita, assistimos a três mulheres se digladiando por poder, posição social ou atenção – os motivos variavam, mas todas tinham em comum a cobiça por algo e um ego que não levava desaforo de graça. Quase 60 anos antes, outro trio deixou os espectadores grudados em suas poltronas para não perder um detalhe de diálogos regados com altas doses de acidez, em A Malvada.
Assim como em A Favorita, o trio composto por Bette Davis, Anne Baxter e Celeste Holm representa a imagem que, provavelmente, é o extremo oposto do que uma mulher deveria ser (ou se portar) em 1950: personalidades fortes, independentes, donas de comentários sarcásticos e descaradamente sedutoras. Uma imagem talvez aceitável em estrelas de cinema, mas bem distante da então desejável “moça de família”, bela, recatada e do lar. A que menos se distancia disso é Karen Richards, personagem de Celeste Holm, em seu papel coadjuvante de melhor amiga gente boa, mas sua convivência com todas aquelas “pessoas de palco” já a tiram dos modos mais convencionais.
Por outro lado, Eve Harrington (Anne Baxter, que aparentemente não se bicava com Bette Davis também na vida real) é o lobo em pele de cordeiro e usa sua pose de mocinha doce, tão bem quista, para passar por cima de todo mundo sorrateiramente. Logo em seu primeiro contato com Karen e a estrela de teatro, Margo Channing (Davis), Eve conta a história da moça sofrida do interior que tira do “faz de conta” das peças e filmes a que assiste a força para superar as tristezas e adversidades da vida real. Eve é o que você hoje chamaria de “falsiane”, mas sua avó dizia que “não vale um vintém”.
A moça é tão convincente que desperta em Margo — uma atriz bem sucedida, vaidosa, e que se considera muito esperta —, um desejo enorme de protegê-la. Para a personagem de Bette Davis, Eve seria “uma ovelha perdida em uma selva de pedra”. É exatamente a vaidade da atriz que é usada contra ela: sua grande fã não mede palavras para mostrar o quanto a venera e, assim, abre caminho para ser colocada dentro do círculo mais íntimo de Margo, como sua assistente.
É então que entramos na questão da inveja: Eve carrega esse sentimento com tanto afinco que isso não permite que ela admire o sucesso de Margo e tente apenas se inspirar na nova amiga. Ela precisa ser Margo, ocupar aquele espaço que, sem sua cabeça tomada por amargura, pertence a apenas uma pessoa. É preciso acabar com o sucesso profissional e pessoal da atriz e assumir o seu lugar, tomar tudo para si.
O temperamento forte e controlador da atriz não ajudam muito, já que quando ela percebe que algo está errado, sua ira acaba repelindo as pessoas que gostam dela de verdade, como Karen e até seu próprio namorado, Bill (Gary Merrill). Uma diva com orgulho ferido se excede facilmente, explode com quem não deveria e perde o controle. Ela também tem uma insegurança pessoal muito ligada ao fato de que já passou dos 40 anos e, como é comum entre atrizes (e entre mulheres, simplesmente), sente que pode a qualquer momento ser trocada por um “modelo mais novo” — o valor da mulher sendo medido por sua juventude, o que acontece ainda hoje, mas era algo ainda mais gritante em meados do século passado. Ainda por cima, todos a sua volta parecem hipnotizados pela magia da jovem e doce Srta. Eve Harrington.
Não é de se espantar que existe um homem querendo tirar proveito da brigalhada toda entre Eve e Margo. O crítico Addison DeWitt (George Sanders) é cheio de si e desenvolve um sentimento de posse por Eve, acuando a pilantra — que estava tão cega e sedenta por obter a glória de Margo para si, que não percebe a aproximação de uma cobra da mesma laia que ela.
Obviamente, existem diversos filmes que colocam homens em oposição uns aos outros, brigando por uma mesma posição. Mas tramas que trabalham relações de poder entre mulheres parecem sempre pautadas em inveja, ciúme e questões mais emocionais do que uma busca pelo poder em si. Se por um lado isso traz mais dimensão às personagens, por outro, se apoia em estereótipos, na velha máxima que mulheres são invariavelmente competitivas umas com as outras. Felizmente, A Malvada dissolve esse estereótipo ao também trazer um bom exemplo de sororidade.
Essa cumplicidade feminina vem em Karen que, quando finalmente cai em si, corre em apoio à amiga. Apesar de antes ter tentado dar uma lição em Margo por seu comportamento histérico e aprontado uma “pegadinha”, que acabou servindo como uma luva para os planos de Eve, não é apenas a culpa que faz com que Karen fique ao lado da atriz. A cumplicidade entre ela e Margo é genuína, um elo fortalecido por anos de amizade, compreensão e admiração mútua. Algo que Eve jamais conseguiria justamente por parecer acreditar no que a sociedade a ensinou: amizade não existe no mundo feminino — com um homem, seria interesse sexual e com outra mulher, seria instintivamente impossível. Ainda bem que nós sabemos que isso não é verdade.
Que texto lindo e bem coeso sobre um dos mais fantásticos filmes da minha lista de filmes da vida inteira. Expandiu ainda mais as percepções que tinha sobre esta obra-prima. Belo trabalho, Roseana.