Miss in Scene | A maternidade sem glamour de “Tully”

Tully, de Diablo Cody, é uma representação realista sobre os desafios da maternidade, mas não se fixa apenas em mostrar o cotidiano de uma mulher exausta com três filhos. Longe do superficial, o roteiro mergulha nos aspectos mais desconfortantes do “ser mãe” em nossa sociedade e se contrapõe à mídia que retrata as mães como super-humanas. O filme transforma esses arquétipos pré-estabelecidos e desconstrói a ideia da mulher maternal como um ser isento de falhas, para humanizar a figura materna com todos os seus perrengues e frustrações.

Essa ideia fica bem clara com o nascimento do terceiro filho de Marlo (Charlize Theron), que sofre com uma depressão pós-parto, atada a um casamento frustrado e as dificuldades de lidar com o filho que tem necessidades especiais. A dor do parto é imensurável; os seios doem devido ao inchaço causado pela produção de leite; o bico do peito inflama; o bebê chora a noite inteira; os pais não dormem. Em média, um recém-nascido mama de 8 a 12 vezes por dia e troca aproximadamente 8 fraldas; multiplique esses números por uma semana, por meses e por todo o período que a criança precisará desses cuidados. Nesse cenário, o pai Drew (Ron Livingston) é uma parte alheia de tudo aquilo que a esposa experimenta. Ele espera que a ajuda seja solicitada, supondo que, até então, o auxílio não seja necessário. Esse conceito é algo que nossa cultura considera permissível há séculos. Só recentemente é que se pediu aos homens que considerassem as mulheres num conceito mais amplo e não apenas em relação a elas mesmas.

Tully_movie

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As coisas parecem melhorar quando Marlo contrata uma babá noturna, que permite que ela descanse durante a noite e tenha mais disposição para lidar com os perrengues diários. Mas, embora as horas de sono a mais tenham lhe feito bem, outras questões parecem emergir conforme a relação com a nova amiga vai se desenvolvendo. Tully (Mackenzie Davis) é sempre muito questionadora e compreensiva, indo além dos cuidados com a bebê, para uma aproximação quase terapêutica com aquela mãe solitária, que reflete sobre não ter trabalhado com sua formação acadêmica de literatura e demonstra um vazio emocional quando questionada sobre seus objetivos de vida. Fica bem claro que o problema não é apenas a estafa física: Marlo está deprimida e os desafios da maternidade agravaram essa situação numa constante sensação de impotência.

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Com o decorrer da história, percebemos o quanto as duas amigas são parecidas, quase como se fossem a mesma pessoa, porque, de fato, são. Quando a aproximação chega em seu ápice, descobrimos que a babá é a própria versão mais jovem de Marlo, evocada por ela mesma para lidar com os problemas emocionais. Naturalmente, em algum momento aquela presença se despede, pois não tem mais utilidade. Talvez o filme dê uma escorregada nesse trecho, porque a protagonista parece aceitar a sua condição maternal, sem voltar a questionar sobre suas questões mal resolvidas. Ela ganha o apoio do marido (o que já é muito bom), mas segue à mercê de dores passadas, dedicando-se em sua tarefa materna com mais plenitude, mas esquecendo-se de si e dos desejos latentes.

Abre parênteses: uma coisa precisa ficar bem clara diante desse tema: a autorrealização da mulher não significa “amar menos” os filhos, mas sim amar a família e a si mesma, já que uma mulher não perde sua individualidade ao se tornar mãe. Fecha parênteses.

Nesse sentido, o desfecho sugere que não é possível para Marlo — ou para as muitas mulheres que se veem em sua existência fictícia —, encontrar um equilíbrio real em suas vidas para lidar com suas necessidades pessoais e maternais. A manifestação de Tully como babá não seria apenas uma alucinação, mas uma metáfora para a mãe que luta para satisfazer suas próprias necessidades multifacetadas. As interpretações são diversas e o final não é tão aberto como poderia ser. O que fica subentendido, ou mal resolvido no roteiro, é de que a protagonista não deseja apenas uma carreira fora de casa, mas uma sensação de si mesma como uma pessoa fora de seu papel de mãe, e é nesse vai e vem emocional que ela se esforça para negar que precisa de apoio. Isso porque a sociedade impõe que uma mãe depressiva não ama os filhos, quando, na verdade, ela não está amando a si mesma e precisa de estímulos fora do âmbito maternal para se sentir plena. É claro que essa situação não é uma regra; há mulheres que se sentem preenchidas apenas com a maternidade, e não há nada de errado nisso.

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Nesse ínterim, uma reflexão: Tully nos lembra que mães também são seres humanos — falíveis, fortes, vulneráveis, idealistas, sensíveis, lutadoras e tudo mais —; enquanto o sombrio retrato da maternidade no filme é de fato extremo, sua escuridão exagerada é necessária para iniciar uma conversa importante sobre como nós, como cultura, retratamos, valorizamos e pensamos sobre a maternidade.

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Elaine Timm

Elaine é gaúcha, formada em Jornalismo, atua como social media e curte freelas. Blogueira de várzea, arrisca escritas diversas. Cinéfila, amante dos livros, musical e nerd desde criança, quer ser Jedi, mas ainda é Padawan. Save Ferris.

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