Séries | Chernobyl

Pessoas não qualificadas para a posição que ocupam; gente que não entende a realidade dos fatos, mas que, mesmo assim, jura que sabe o que estão fazendo: isso é uma das coisas mais perigosas do mundo. A minissérie da HBO relata o ocorrido na usina nuclear de Chernobyl, porém, acima de tudo, mostra como o ser humano, em forma de Estado, pode ser uma máquina letal quando olha apenas para si mesmo em detrimento das pessoas.

Sem enrolações, a história começa contando a sentença do engenheiro Anatoly Dyatlov (Paul Ritter) através da gravação de Valery Legasov (vivido pelo excelente Jared Harris), cujo destino também é selado. Só viremos a entender a complexidade daquelas palavras no decorrer dos 5 sensacionais episódios de Chernobyl. Após essa cena, somos imediatamente levados aos acontecimentos de exatos 2 anos antes, quando aconteceu o acidente nuclear, e já durante a catástrofe.

A questão é que os acontecimentos que se sucedem são tão chocantes que nem é tão necessário conhecer profundamente os personagens para se emocionar com o que eles irão passar. O espectador prontamente odeia quem deveria odiar e torce pelos demais, mesmo sabendo que a maioria daquelas pessoas não terá salvação. Por se tratar de fatos reais — e bem conhecidos —, o trabalho de introdução narrativa foi feito pelo próprio curso da história.

Eu prefiro a minha opinião à sua

Algo que fica claro desde o início é: quem deve ser ouvido, não será ouvido. O orgulho soviético é muito marcante na série, mas a coprodução EUA/Reino Unido não chega a desandar para um sentimento anti-URSS; ela apenas mostra como havia uma superproteção da imagem do Estado, a qualquer custo — o Estado acima de todos.

Em algumas cenas, o espectador pode até ficar em dúvida se a descrença na catástrofe por parte dos figurões é o modus operandi porque eles estão tentando deliberadamente abafar o caso, ou se aquela atitude é quase automática, após tantos anos do regime bolchevique impregnar em suas mentes a ideia de que a URSS é invencível, indestrutível e inabalável, que eles nem acreditam realmente que algo possa dar errado. Às vezes, soa até como uma tentativa de autolavagem cerebral, como se eles tivessem a necessidade de convencer a si mesmo tanto quanto aos outros. A segunda opção fica aparente em Boris Shcherbina, o personagem que Stellan Skarsgård interpretou em uma atuação magistral.

Já Garanin (Victor McGuire), assim como muitos outros, sofre de um problema diferente: a soberba de quem chegou a uma posição de poder e não sabe admitir que está errado ou que não compreende algo. Sua breve cena no segundo episódio, em que Ulana Khnomyuk (a ótima Emily Watson) vai até o gabinete do secretário-adjunto alertá-lo sobre as medidas que precisam ser tomadas imediatamente, resume diversas outras reuniões que vemos ao longo da minissérie entre a cúpula política e Legasov ou a própria Ulana. Garanin diz preferir a própria opinião à da cientista e ela aponta que sabe o que está dizendo, já que é física nuclear, enquanto o político trabalhava em uma fábrica de sapatos anteriormente. A resposta, cheia de desdém, é simples: “sim, eu trabalhava em uma fábrica de sapatos. E agora estou no comando.”

Os roteiros dos cinco episódios são tão bem escritos que fazem questão de nos alertar para comportamentos bastante atuais, mostrando que eles são na verdade antigos e muito perigosos. É como um tapa na cara necessário.

 

Medo e poesia

Além da excelência dos roteiros e do elenco, o que tornou Chernobyl tão grandiosa foi o conjunto de sua fotografia, direção de arte e trilha sonora.

Ainda no primeiro episódio, a cena em que a poeira radioativa atinge os conjuntos residenciais da cidade de Pripyat — onde moradores observam de longe o incêndio na usina —, tem uma plástica quase poética, com as cinzas acariciando os rostos; os cabelos das moças dançando ao vento; crianças saltitando e rodopiando, brincando com as partículas que eram sopradas daquela bola de fogo ao longe, inocentemente. Mas a trilha pesada nos lembra do perigo. É um som de notas graves, que lembra morte.

A mesma lógica segue por toda a série, a um ponto em que ver cenas de vento balançando galhos de árvores ou um pedaço de grafite sobre o chão nos arredores da usina, por exemplo, já causa uma tensão absurda. É uma tensão com doses de melancolia, que auxilia também no entendimento da sensação de impotência sentida por Legasov e Ulana (e, mais tarde, Shcherbina), e faz contraponto com as pessoas que vão entrando em pânico, aos poucos.

A paleta de cores acinzentada, resultado na união da iluminação com os figurinos e cenários (a maior parte da série foi filmada na Lituânia), expõe uma certa frieza própria do momento histórico. Há um pouco mais de cor, natureza e vida quando vemos a população ainda em suas vidas normais — crianças indo para a escola, pessoas circulando entre os edifícios residenciais —, alheias a tudo o que realmente se passava. Mas, ao decorrer da série, essas cenas vão ficando mais escassas, naturalmente, já que as cidades do entrono vão finalmente sendo evacuadas. Um abandono com rastro de morte, doenças e medo continuava se alastrando com a radiação.

“Se uma vez eu só me importei com o custo da verdade, agora eu só pergunto qual é o custo das mentiras.”

Didática sem ser condescendente, Chernobyl explica o que ocorreu naquela noite de abril de 1986 de uma forma acessível até para quem não leva muito jeito com física e química. Porém, mais do que apenas essas áreas de conhecimento, a série é um estudo social e político riquíssimo.

Chernobyl vai a fundo na (falta de) capacidade humana de lidar com a falha, admitir erros e, acima de tudo, definir as prioridades em um momento de crise. Afinal, o que é mais importante: preservar a imagem da nação mantendo a ordem e o poder em um momento político crucial; ou admitir as imperfeições e erros a fim de salvar vidas? Legasov tinha sua resposta. Infelizmente, o governo soviético não compartilhou da mesma opinião.

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Roseana Marinho

Roseana é publicitária e acha que os dias deveriam ter pelo menos 30h para trabalhar e ainda poder ver todos os filmes e séries que deseja. Não consegue parar de comprar livros ou largar o chocolate. Tem um lado meio nerd e outro meio bailarina.

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