Horroscópio | A Noite dos Mortos-Vivos (1968)
Texto de Jonatas Rueda e Yasmine Evaristo
O cineasta George A. Romero é uma das figuras mais importantes para o gênero do horror, sendo considerado o principal responsável pela fama dos zumbis na cultura popular por estabelecer noções que iriam se configurar como cânone — seja no cinema, na TV com The Walking Dead ou até mesmo no mundo dos games com Resident Evil. Com um orçamento bem limitado, filmado em preto e branco no estado da Pensilvânia, a obra-prima chamada A Noite dos Mortos-Vivos tornou-se um dos filmes independentes mais lucrativos da história e demonstrou seu valor e potencial nesse gênero.
O preto e branco das imagens, além de gerar um viés quase documental, também beneficia o simples, mas bem competente trabalho de maquiagem. A obra nunca exagera com cenas que envolvam os ghouls (em momento algum escutamos a palavra “zumbi” em pouco mais de 90 minutos). Romero quer ser mais que isso; recusa-se a ser um mero entretenimento, porém, usa a plataforma de maneira que faça o espectador se divertir e, ao mesmo tempo, nas entrelinhas, discutir camadas sociais pertinentes.
Apesar de falar em muitas entrevistas que nunca teve a intenção de falar sobre o racismo, é essa camada social que cria empatia e torna as coisas mais urgentes. Os anos 1960 são marcados por uma grande tensão racial nos Estados Unidos. Mesmo sem perceber que sua obra refletia esse e outros problemas em voga no período, Romero possibilita a existência desse diálogo sobre a selvageria e alienação em tempos de crise.
Por isso, A Noite dos Mortos-Vivos faz uma reflexão sobre o assunto ao colocar um negro (Duane Jones) com características do típico herói da história numa época de conflitos. O tabu é tão grande que virou até piada recorrente o fato de personagens negros serem quase sempre os primeiros a morrerem em filmes de terror.
Em relação à violência, a obra de 1968 chega a ser gráfica, mas nunca é chocante para os olhos do novo milênio. A direção é inteligente ao sugerir as consequências das ações realizadas (como, por exemplo, apenas evidenciar a cabeça do morto-vivo com um buraco no meio da testa provocado pelo tiro que escutamos) e, como já dito antes, ao não abusar com cenas que envolvam as criaturas, criando-se, assim, por consequência, uma tensão palpável.
Barbara (Judith O’Dea), em oposição à atitude histérica e rude de Harry, apresenta plena apatia diante do choque provocado pelo ataque que vitima seu irmão Johnny (Russel Streiner). A moça sai de sintonia ao conseguir chegar à casa e passa toda narrativa num tipo de transe. Sua postura a torna semelhante aos próprios ghouls: um ser que vaga com seu corpo abatido e olhos vazios. Diante desses três personagens, não há como não ler o filme de Romero como uma crítica (ainda que não proposital) do desgaste que o país vivia em suas várias camadas.
A narrativa sufocante que se passa, em sua grande parte, dentro de uma casa, beira o claustrofóbico, onde temas como solidão e alienação podem também ser notadas. Apesar dos muitos personagens possuírem o mesmo objetivo, no fim, é cada um por si, expondo a individualidade e egoísmo do ser humano. Enquanto os mortos se fortalecem à medida que mais deles se unem aos grupos que se encontram fora da casa, os humanos se dividem, reduzindo, a cada ato, a possibilidade de sobrevivência.
Alguns diálogos são bastante expositivos por sabermos (com detalhes) os motivos daqueles acontecimentos através da televisão e do rádio, além das atuações dignas de grandes filmes B ao não comprometer a verossimilhança da diegese. Entretanto, se Romero falha aqui e ali com esses diálogos, se comprova um diretor sutil ao colocar Barbara (logo no começo) correndo da ameaça ao se apoiar numa espécie de máquina que contém gasolina — algo que viria a ser a única solução, no terceiro ato, para a sobrevivência de todos naquela fazenda.
As atitudes, diante do pânico e da incerteza da situação proposta, jogam por terra a perfeição vendida na época como ideal de vida dentro daquela sociedade. As relações familiares, seja a dos irmãos ou a do casal, estão ruindo; a falta de conhecimento do que está acontecendo leva as pessoas ao isolamento; aqueles que normalmente detêm o poder, ao ter suas práticas questionadas, não sabem como lidar com a oposição.
O final pessimista gera uma gigante aflição por justamente fazer questão de mostrar o cadáver do protagonista e o comportamento daqueles que o mataram como uma vitória pessoal, culminando (nos últimos segundos, após os créditos finais) numa fogueira para consumir os corpos dos mortos, nos remetendo aos linchamentos, enforcamentos e qualquer outra forma perversa de assassinato. No corte original existia uma cena na qual os corpos de zumbis estavam pendurados em árvores, servindo de alvos para tiro dos caçadores — sendo que essa cena foi eliminada no corte final devido a tensão racial existente na época e, em 1990, numa na refilmagem homônima dirigida por Tom Savini, o segmento foi incluído.
É a ficção da história ultrapassando todos os limites possíveis da tela para atingir a realidade estadunidense, nos “esfregando na cara” que somos uma espécie que comete barbaridades sem precisar de situações extremas e que a materialização da maldade pode estar mais perto do que imaginamos. Basta olharmos para o lado.
Nota: ★★★★★
Ficha técnica
Nome Original: Night of the Living Dead
Ano: 1968
Direção: George A. Romero
Roteiro: George A. Romero e John Russo
Elenco: Duane Jones, Judith O’Dea, Karl Hardman, Marilyn Eastman, Keith Wayne, Judith Ridley, Kyra Schon, Bill Cardille, George Kosana
Montagem: George A. Romero
Maquiagem: Bruce Capristo