Fotogramas | Paixão, assassinatos e tango em Chicago
Quando se trata de filmes inspirados em grandes espetáculos da Broadway, é de se esperar números musicais de encher os olhos. Em Chicago, dirigido por Rob Marshall em 2002, uma das sequências mais marcantes é a do “Cell Block Tango”, quando nos são apresentadas seis (possíveis) assassinas daquele presídio feminino onde a protagonista, Roxie Hart (Renée Zellweger), acaba de ser encarcerada. As histórias dessas mulheres são contadas não só através da letra da canção, mas também dos passos de dança, um tango com ares de ballet contemporâneo precisamente coreografado.
Com uma mise-en-scène completamente em tons escuros (tanto o cenário quanto os figurinos são pretos), o destaque é sempre um lenço vermelho, que representa não apenas o sangue das vítimas, mas também a natureza passional de todos aqueles crimes.
A canção invade a angústia de Roxie em sua primeira noite na prisão, iniciando a partir da junção de sons comuns: uma torneira pingando; os passos dos guardas nos corredores; o tamborilar de dedos nas grades. E então, lá estão elas: as seis alegres assassinas do Presídio de Cook County. Acompanhamos junto com Roxie a apresentação.
Pop…
A primeira aparição de Liz (Susan Misner), ainda na apresentação das seis e suas “palavras-chaves”, mostra a moça riscando um fósforo, o que é um prelúdio do que vamos ver a seguir: Liz tem temperamento forte e pavio curto. Matou o marido porque a mania dele de fazer bolas com o chiclete a estava irritando demais.
Na dança, seus movimentos são elegantes como os de um gato; parecem sempre uma ameaça iminente, uma bomba-relógio prestes a explodir, exatamente como a natureza da personagem. Até que há o golpe final e certeiro, do qual sua vítima não escapa.
O diretor foi inteligente em mesclar as cenas do número musical com outras das mulheres contando suas histórias umas para as outras no dia-a-dia da prisão. E o que Liz aparece fazendo enquanto caminha pelos corredores? Riscando palitos de fósforo exaustivamente, quase como um tique nervoso, num ato que demonstra claramente a sua impaciência.
Six…
Assim como Liz, Annie (Denise Faye) entra em cena sob um holofote claro, mas as luzes de fundo possuem tonalidade azul — uma referência à frieza das assassinas. Sua coreografia é como um flerte, movimentos cheios de libido enquanto conta como se apaixonou por Ezekiel Young.
Seu figurino também demonstra a sensualidade mais latente, embora sua história seja de uma vida pacata cuidando do jantar quando seu homem chegava em casa. O que nos leva a crer que Annie descobriu um poder interior, justamente em seu ato extremo de envenenar o rapaz, ao descobrir que ele tinha outras 6 esposas. A cena nos deixa a impressão de que ali morreu também a Annie romântica e nasceu uma mulher que não deixa nada barato. Não à toa, a música segue: “Ele mereceu. Ele colheu uma flor em seu primor. E então ele a usou e abusou dela. Foi um assassinato, mas não um crime”.
Squish…
Se na canção “squish” é uma onomatopeia que se refere ao som da faca perfurando o corpo da vítima, a palavra também significa “esmagar”. É o que vemos June (Deidre Goodwin) fazer com as barras de ferro da cadeira em sua primeira aparição na sequência, colocando as mãos na grade e apertando.
Sua história traz momentos de tensão, com os corpos dela e do marido sempre em oposição e movimentos quase espelhados, no que poderia ser tanto uma tourada quanto uma dança do acasalamento de leões ferozes. Tudo simbolizando a pressão de Wilbur por uma confissão: ele acusa June de o estar traindo com o leiteiro.
Diante do marido enlouquecido e violento (a câmera foca o tempo todo em seus músculos, demonstrando um homem grandalhão e pronto para partir para a violência), o único contato físico entre os dois é quando ele, aparentemente, a agarra e ela se defende com a faca; a morte mais uma vez simbolizada pelo lenço vermelho — dessa vez bem longo, já que foram 10 golpes.
Uh-uh…
Há uma inversão na iluminação quando é a vez de Katalin, também chamada de Hunyak (ou Húngara, vivida por Ekaterina Chtchelkanova), entrar em cena. A iluminação azul cai diretamente sobre o casal de bailarinos. Sua espiritualidade, um dos significados da cor, já havia sido demonstrada durante a apresentação, quando a húngara, que se diz inocente, aparece com um terço nas mãos, em oração. Em torno, a iluminação vermelha incide sobre os três casais anteriores “estáticos”, criando uma oposição em relação à culpa e inocência entre o grupo de encarceradas.
A coreografia é quase um pas de deux de ballet clássico, uma cena que demonstra apenas amor e afeto. A substituição do lenço vermelho por um tecido branco atesta a inocência da moça no crime.
A legenda oficial não traduz o que é falado em húngaro pela moça: “O que estou fazendo aqui? Eles dizem que meu amante famoso segurou meu marido e eu bati na cabeça dele. Mas não é verdade. Eu sou inocente. Eu não sei por que o Tio Sam diz que eu fiz isso. Eu tentei explicar na delegacia, mas eles não entenderam.”
Cicero…
Como Velma Kelly (Catherine Zeta-Jones) é a concorrente direta de Roxie pelas primeiras páginas dos jornais e já era uma celebridade mesmo antes do assassinato, ela aparece dando entrevistas aos jornalistas durante sua parte de “Cell Block Tango”. Essa lógica tem continuidade mesmo enquanto Velma está sob os holofotes da encenação de seu crime, reforçando a sede por fama da personagem: ela aparece mais narrando os eventos do que participando deles.
Quando ela conta sobre sua volta ao quarto no hotel Cicero, quando pegou seu marido e sua irmã no flagra, alguns takes em movimentos lentos e sensuais de outros dançarinos nos dão a dica exata do que estava acontecendo.
É interessante como o holofote sobre o casal de traidores se apaga vagarosamente (enquanto ela diz que teve um apagão na hora e não se lembra de nada) e uma luz vermelha passa a iluminar Velma (quando ela conta que lavava o sangue de suas mãos).
No refrão, chega a dança que encena a briga do trio.
Lipschitz!
Mona (Mya) e seu parceiro dançam cercados por uma roda de mulheres, representando o jeito mulherengo de Al Lipschitz, sempre rodeado de beldades. Se no momento em que ela conta como o amava eles dançam de frente um para o outro; ao descrever a boemia do rapaz ele está de costas para Mona, que observa descontente enquanto ele baba por outras moças.
É curioso notar que o olhar atento da acusada é a parte do seu corpo que aparece no momento das apresentações no início da sequência.
Que vagabundo!
O refrão final é a parte mais agressiva de todo o número, tanto na intensidade da música quanto da coreografia. A luz vermelha domina o palco e os gestos acusativos são recorrentes. Um grupo maior de dançarinas se junta ao grupo de assassinas no palco, em uma dança de passos fortes e marcados, dando o tom de violência e revolta. Afinal, para elas, se todos aqueles homens pisaram feio na bola, mereceram o que aconteceu com eles… ainda que algumas ainda clamem inocência.
A canção e a coreografia convidam o espectador a se colocar no lugar de mulheres que sofreram, foram enganadas, abusadas e se sentiram usadas, por homens cheios de si. “Eu não o matei, mas se eu tivesse matado, como você pode dizer que eu estava errada?… Se você estivesse lá, se você tivesse visto, eu aposto que você faria o mesmo.”