Cine Ceará | A Vida Invisível

Dia 01

Por Tiago Araújo

O texto a seguir possui spoilers. Leia por sua própria conta e risco.

A Vida Invisível abre com imagens bucólicas da natureza e com uma crescente trilha melancólica. Vemos duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) Gusmão, observando o mar enquanto ele bate contra as rochas, forte, indomável. Na pequena mata, as duas, em um golpe de vista, se perdem uma da outra. Começam a gritar, mas ninguém escuta. A natureza faz valer o darwinismo, o fraco não sobrevive aos perigos do mundo lá fora. A vida te leva por caminhos tortuosos, te esmaga nas selvas de concreto e te afasta dos sonhos e dos amores. Assim se inicia o filme de Karim Ainouz, com o céu azul se transformando em vermelho, a música atingindo o ápice da melancolia, quase aterrorizante, e o título subindo também em tom vermelho, com letras esticadas aludindo aos forçosos prolongamentos das dores durante a vida.

Esse início é uma metáfora perfeita para o que o filme vem a se tornar: uma odisseia cheia de desencontros. Karim logo parte para apresentar as irmãs Gusmão, moradoras de uma simpática casa no Rio e filhas de portugueses. Guida se mostra a mais transgressora das filhas, buscando no amor idealizado a vontade de crescer para além das asas dos pais, descobrir os prazeres da carne antes dos valores de castidade por eles impostos se concretizarem, o sexo após o casamento. Eurídice, por outro lado, é a mais afetada por essa castidade e mostra uma predileção pela arte, mais especificamente pelo piano, onde nutre seus sonhos. O diretor deixa isso bem evidente apenas mantendo a câmera no rosto da personagem por alguns segundos, estendidos o suficiente para entendermos que o piano é não somente um hobby, mas que faz parte do psicológico e do universo particular de Eurídice.

Guida se entrega aos encantos de um grego, Yorgos. Ele a leva para uma festa e a faz se sentir especial, como qualquer adolescente se sente ao descobrir o prazer. A festa é filmada com planos de conjunto, ou seja, que mantém os dois no quadro em igual importância, ao passo que o tempo é dilatado, fazendo com que a cena fique mais lenta, em uma espécie de slow motion estilizado. Isso deixa clara a atmosfera de sonho, de satisfação com a idealização de Guida, mas ao mesmo tempo as fortes cores de vermelho e verde, quase complementares aqui, dão uma sensação de alerta, de uma felicidade passageira, o que de fato se confirma mais à frente. Aqui dá para enxergar na direção de arte de Rodrigo Martirena e na fotografia de Hélène Louvart o quanto as cores ajudam a moldar a narrativa e são estrategicamente pensadas em cada plano para causar sensações e trazer à superfície características de cada personagem. Três são usadas para construir essa complexa gama de sentimentos: o azul (tristeza e sentimentos associados), o vermelho (alerta e violência) e o verde (incômodo). O roxo, a cor da morte no cinema, também surge, assim como o vermelho clarinho, quase rosa, associado a sentimentos mais positivos. Os tons mais escuros são reservados aos homens, por um motivo que discutiremos mais à frente.

Essa cena de festa contrasta de maneira forte com uma outra em que Guida já se encontra como uma mãe solteira em negação, tendo sido rejeitada pelo pai e se perdido da irmã. Na festa dessa nova cena, ela é cantada por um homem. A luz vermelha, o alerta da masculinidade tóxica, da violência, aparece ali. A personagem recusa a investida, mas logo começa a se envolver com outro homem de camisa vermelha. Este a leva para um banheiro sujo, iluminado por um azul proeminente, a cor dos sentimentos tristes no cinema. Guida, possessa por um sentimento de raiva, masturba o homem de maneira rápida, enquanto a figura dele é encoberta por uma escada em plano aberto, um enquadramento pensado por Karim para determinar o caráter daquele personagem, o retirando de cena completamente, além de evidenciar o distanciamento emocional de Guida.

Esse contraste entre cenas deixa claro que as personagens passam por dores profundas, causadas pela proeminência de um machismo entranhado na sociedade, um machismo que causa feridas não somente físicas, mas principalmente psicológicas, muitas vezes incuráveis. Eurídice também passa pelo mesmo com um marido, Antenor (Gregório Duvivier), viciado em sexo e que diminui o maior de seus sonhos, o de ser uma pianista. É assustador o retrato pintado por Karim na cena da noite de núpcias dos dois. Antenor droga Eurídice e todo o resto da cena é basicamente ele perseguindo-a para transar, enquanto ela foge de maneira destrambelhada dentro do quarto. Aqui o diretor filma sempre de maneira a captar as expressões da personagem durante a violência, com seu rosto e corpo sempre em primeiro plano, mostrando em dado momento um plano detalhe do pênis do homem, uma imagem forte que ilustra sua doença pelo sexo, pelo prazer, aqui já não mais inocente como o de Guida, mas que demonstra uma posição de dominância e de poder.

Em uma outra cena importante, Eurídice se encontra tocando o piano. Karim novamente coloca a câmera no rosto da personagem, mas agora a fotografia a ilumina com uma fina luz branca, dando uma aura quase santificada ao ato de se fazer arte que Eurídice tanto busca. Ela se perde ali, no seu universo, se desconectando dos problemas de sua vida com o marido. Antenor surge, literalmente como uma sombra, metaforicamente como um monstro, na parte do fundo do quadro e acende a luz. Nisso, a personagem para de tocar o piano e tenta ignorar ao máximo o esposo, voltando à sua dura realidade, tentando fugir dela.

O filme segue com esse eixo temático: A dor diante do universo tóxico dos homens. As mulheres aqui, quase em sua totalidade, sofrem algum tipo de violência, mas persistem e lutam para sobreviver no ambiente hostil em que são posicionadas. Apesar da tragédia e realidade inerente ao cenário, Karim Ainouz expõe essa luta de maneira positiva, com um final reflexivo e cenas que trazem Eurídice alcançando o máximo de seu talento. O roteiro de Murilo Hauser, Inês Bortagaray e do próprio Karim Ainouz traz essas personagens plurais, aborda muito bem o contexto em que cada uma delas se insere e traz problemas cada vez mais difíceis e duros de se enfrentar e de assistir, constituindo um eixo dramático, basicamente personagens, seus obstáculos e como perpassá-los, rico e bem trabalhado, como poucos no ano. Além de equilibrado, o roteiro traz elementos como a narração em off bem integrados, que revelam o que se passa na cabeça dos personagens e o desdobramento de algumas ações de maneira sutil, sem obviedades, aliado ao drama. O único problema do texto talvez seja o fato de, em alguns momentos, acontecerem certas verbalizações desnecessárias de alguns sentimentos, revelando uma leve exposição, mas que não estraga nem mesmo uma ínfima porção do resultado final.

Para finalizar, é necessário falar sobre a participação de Fernanda Montenegro, a dama da dramaturgia brasileira. Karim a filma sempre buscando a sua expressão de tristeza e melancolia, necessária para encarnar uma Eurídice que viveu inúmeros dissabores em sua vida. Não detalharei as cenas da carta e de um certo encontro para manter ainda um mínimo de surpresa, mas basta dizer que é uma atuação sublime, digna de um ícone da arte e que persiste na nossa mente ao fim da projeção. Até agora a imagem não me abandonou. O restante do elenco vai bem, especialmente Julia Stockler como Guida, elevando as dores de sua personagem e roubando diversos momentos do filme para si. Fica também a menção à Gregório Duvivier, um ator que nunca havia visto fazendo drama, mas que faz muito bem, construindo um personagem extremamente repulsivo de maneira crível.

A Vida Invisível é um filme belo, que explora a poesia dentro da dor e reconhece a luta feminina, trazendo de maneira equilibrada para a tela um contexto social terrível e que reflete não apenas os anos 40 e 50, mas a realidade de hoje. Karim Ainouz, já afirmado como um dos grandes cineastas contemporâneos, dá mais um passo rumo à história, podendo emplacar o primeiro filme brasileiro indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro desde Central do Brasil, em 1999, há exatos vinte anos. Se realmente é o melhor filme brasileiro do ano e o que teria mais chances na premiação, é algo discutível, mas o fato é que estamos bem representados por Karim e sua poética das imagens, trazendo orgulho para todos nós brasileiros e, principalmente, para nós, cearenses.

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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