Cine Ceará | Vozes da Floresta; Luciérnagas

 

Dia 04

Por Tiago Araújo

O texto a seguir possui spoilers. Leia por sua própria conta e risco

Vozes da Floresta

 O documentário Vozes da Floresta tem as marcas da luta das mulheres brasileiras em seu DNA. A luta pela demarcação de terras, pelo exercício dos direitos de seus povos, pelo poder de trabalhar sem interferências e trazer desenvolvimento, pelo bem estar de suas comunidades. Dirigido por Betse de Paula, o filme se inicia com o discurso de uma advogada indígena, a primeira do país, Joênia. Ela fala de maneira apaixonada e forte pelo reconhecimento das terras indígenas no Supremo Tribunal Federal, citando as 21 lideranças mortas, o status de invasores e ladrões que eles possuem e os confrontos com os latifundiários que, a todo momento, querem tomar suas terras e propriedades.

Esse forte início já dá um panorama bom ao espectador da situação de muitas tribos no norte e nordeste do País. Betse de Paula, com planos abertos mostrando a floresta de cima, vai nos colocando dentro daquele ambiente. Em poucos minutos estamos em uma tribo, enquanto a diretora caminha dentro do espaço com sua câmera leve e solta. Existe uma predileção pelos depoimentos e o filme vai seguindo essa clássica estratégia, ouvindo personagens que dão voz às lutas. Joênia, a advogada, é a primeira a falar. Começa dando alguns motivos para ter seguido em frente no direito, dizendo que assim poderia lutar pelos direitos de sua tribo. A entrevista segue um tom mais obscuro quando Joênia cita um dos confrontos com latifundiários que acabou em tiros e mortes. Muitos desses confrontos acabam em envenenamento dos indígenas da região por arrozeiros e diversos outros. Nesse momento, a montagem insere uma imagem de arquivo do confronto, forte e sem nos poupar de balas, do sangue dos inocentes e de protestos da população.

Isso dá mais do que vazão ao entendimento de quão brutais são esses confrontos e da extrema ganância dessas pessoas. O filme retoma as sessões no STF, com Joênia dizendo que existia uma história de que muitos ministros já tinham as fundamentações em mãos, mas que depois de seu depoimento elas foram modificadas, dando lugar a uma fala da ministra Carmem Lúcia admitindo que todos têm de aprender com os indígenas e com o processo tendo um final feliz.

Depois dessa história particular, Betse de Paula segue com mais uma personagem e vai gradativamente alternando, demonstrando costumes, atividades produtivas e o local de moradia. Sônia Guajajara é outra personagem importante entrevistada, pois ganhou projeção nacional ao ser anunciada como a vice do candidato Guilherme Boulos na eleição de 2018. Ela tem uma fala importante, pois explica uma PEC, proposta de emenda à constituição, que diz respeito à retirada dos assuntos indígenas do executivo para o legislativo, ou seja, as questões de demarcação de terras iriam para a Câmera dos Deputados, onde existem algumas peças protetoras do agronegócio e que fariam de tudo para ajudar grandes latifundiários. Em uma ironia do destino, hoje temos um executivo que mais do que apoia o agronegócio, lambe as botas dos grandes empresários das terras do norte.

O filme segue, curiosamente anunciando um novo capítulo, chamado Das Quebradeiras de Coco Babaçu. Enquanto o primeiro, denominado Das Indígenas, focava na luta das tribos do norte, o segundo foca na luta da mulher para conseguir realizar suas atividades produtivas em diversos territórios. O filme, então, começa suas andanças pelo Maranhão, passando pelo Rio Xingu e chegando até o Pará, coletando falas e descobrindo as regiões e suas personagens. Betse de Paula segue na tendência estética realizada na primeira parte, com depoimentos, grandes planos dos locais com movimentos de câmera e imagens de arquivos em momentos bem específicos.

A personagem mais interessante da segunda parte é a presidente do sindicato dos trabalhadores de uma cidadezinha no norte do país. Seus depoimentos giram em torno de conseguir unanimidade na votação para presidir o órgão, motivo de grande orgulho, bater de frente com o sistema para não permitir apropriações indevidas, e, em um dos momentos mais íntimos e psicológicos do filme, revelar o medo de ser torturada por empresários locais, por seus inimigos, pois a tortura seria muito pior para uma mulher. A personagem ainda nos fornece dados sobre instituições corruptas que lucram às custas dos trabalhadores pobres de sua região.

Logo após fazemos uma visita ao rio Xingu e relembramos toda a politicagem da época de Fernando Henrique Cardoso para a construção da hidrelétrica de Belo Monte. O medo dos indígenas terem suas terras inundadas pelo rio foram crescendo a cada dia, enquanto o governo prometia que isso não aconteceria. Betse de Paula mostra aqui belas imagens de arquivo de uma liderança indígena apontando um facão para o governante responsável em um encontro promovido, chamando-o de mentiroso. A diretora, em um movimento rápido de câmera, mostra o estado decrépito que muitas das habitações possuem hoje, enquanto a entrevistada fala que os políticos tentaram, por meio de uma empresa de energia, desapropriar a população com baixos preços.

O filme ainda visita um território paraense utilizado como base de lançamento de foguetes pela agência espacial brasileira. A luta segue na justiça, enquanto o órgão governamental tenta, de todas as formas, se apropriar de terras indevidamente. A cena que fecha é um vídeo de arquivo de um foguete decolando, algo que me parece bem reflexivo da dificuldade da luta dessas mulheres em todos esses territórios. Seja latifundiário, seja Governo, tudo o que eles querem é tomar o que é de outras pessoas, protegido por lei, para dar vazão a um chamado progresso, forçando até muitas vezes “colocar o foguete para decolar”.

Se por um lado, a diretora Betse de Paula consegue, com louvor, expor os problemas de mulheres e suas condições de luta, por outro ela não parece ter o mesmo sucesso em respeito à alguns elementos técnicos de seu filme. Não foi raro ver takes com alguns problemas esquisitos de foco, mal encaixados na montagem e sem uma serventia muito clara, como é o caso de um plano específico em que a câmera entra na água para mostrar um peixe, quando ela já havia mostrado os peixes em um plano anterior. A montagem, já que estamos falando dela, também parece esticar demais certas cenas, como as da diretora caminhando pelo mato com alguém ou mostrando alguma coisa. Isso afeta muito o ritmo, um dos pilares essenciais de um filme. Por último, mas não menos importante, o recorte feito de todas essas histórias poderia ter sido menor. Nem sempre o filme consegue trazer histórias cativantes ou sequer interessantes para abordar. As que aqui citei são as que me despertaram curiosidade e atenção, mas lá pelo meio do filme ele quase me perdeu, o que poderia ter sido evitado. A palavra é concisão, que faltou aqui.

Vozes da Floresta aborda a vida e a luta de mulheres guerreiras em ambiente hostis de maneira competente, apesar dos pesares técnicos. Com tudo e todos contra elas, privilegia e traz à tona suas trajetórias inspiradoras e clama para que façamos a nossa parte no processo. O filme, afinal, não poderia ter estreado em momento mais propício, em uma das maiores queimadas da Amazônia nos últimos anos, alvo de intensos debates internacionais. Betse de Paula, em seu momento mais inspirado, começa seu plano na bandeira do Brasil, grande e imponente, dando um zoom out e revelando uma grande manifestação das mulheres em Brasília. Esse é o Brasil que precisamos, o Brasil do povo que luta, de todos e para todos.

Luciérnagas

Luciérnagas, de maneira sutil, já nos introduz duas das principais questões do filme logo de início. Na primeira, o protagonista Ramin observa um colega de trabalho por alguns segundos de maneira curiosa. A diretora iraniana Bani Khoshnoudi, quando decide por utilizar um primeiro plano e um contraplano para estabelecer uma relação entre esses dois homens, está subliminarmente dando importância a esse gesto, pois no cinema narrativo, quanto mais próxima a câmera está do rosto do ator, mais psicológica a dimensão do drama se torna. Ainda não sabemos a natureza de uma possível interação entre eles, mas logo ela será retomada.

A segunda questão surge quando Ramin vai ao porto da cidade perguntar se seria possível pegar um navio para ir a Grécia ou Turquia, demonstrando algum tipo de insatisfação com o lugar em que se encontra, Veracruz, no México. Essas duas temáticas, a da relação distante e a da inadequação espacial permeia toda a obra. Uma terceira e muito menos evidente, a da forte e primordial ligação de amizade, se desenvolve de maneira um pouco mais tímida, irrompendo ao fim. Ramin, depois de um dia de trabalho estressante, toma um banho e escuta um áudio de um homem falando de uma maneira amorosa consigo. O seu olhar distante pela janela e seu quarto sombrio nos revelam mais partes do quebra cabeça. O personagem é um imigrante, sofrendo uma separação forçada de seu amor e lutando para se adequar ao novo lar, por mais diferente culturalmente ele seja.

Temos a mais absoluta certeza que a leitura está correta quando Ramin vai a um local para conversar com esse homem por Skype. Na conversa, o protagonista revela o desejo de voltar para onde se encontra o amado, que retruca de maneira incisiva: “Você enlouqueceu?“, logo depois se referindo à sua vida como difícil. Por conta da barreira linguística (Ramin não fala espanhol) e do contexto da conversa, é perceptível que ele vem de um país do Oriente Médio. Porque será que ele teve de se separar e fugir? A homossexualidade é fortemente reprimida em países dessa região, em alguns lugares até com punições severas. A resposta parece clara e o filme, sutilmente, nos traz uma outra temática, a da intolerância e preconceito.

Com isso já estabelecido, o filme agora busca trazer Guillermo ao jogo, aquele colega de trabalho de Ramin que aparece no início do filme. Uma relação íntima vai se desenvolvendo, com o foco na proximidade e na troca de olhares. Um bom exemplo é a cena da praia. Guillermo pergunta ao nosso protagonista o porquê de ele ter marcas na pele. Este responde que foi preso em sua cidade e não explica o motivo, sabendo certamente que poderia sofrer homofobia. O outro personagem então diz que também foi preso e sofreu muito, pedindo para Ramin sentir suas feridas. Nesse momento existe uma barreira entre os dois, mas cada ação parece uma afirmação de sentimento, de desejo. A maneira como os dois efusivamente conversam em outras cenas pode trazer uma sensação de falso coleguismo, com um sentimento claro a cada vez que um olha para o outro.

Uma coadjuvante também relevante para a história é Leti. A mulher que aluga o quarto para Ramin fica em choque quando descobre que seu ex-namorado, Ernesto, está voltando para Veracruz, trazendo à tona uma história de tristeza e abandono. A cada vez que é proposto a ela um encontro, a fuga parece ser a melhor opção. Isso reserva à personagem um sentimento de estar presa ao seu passado, que veio pessoalmente assombrá-la novamente. Esse sentimento não é distante do que Ramin e Guillermo, em suas conversas, demonstram possuir. Ambos tentam a tão sonhada nova vida em outro lugar, achando que a fuga da realidade é o melhor caminho. A cidade de Veracruz acaba por ser essa metáfora que o roteiro propõe, uma grande cadeia que aprisiona os sonhos e mantém a distância entre as pessoas.

Leti também dá aulas de espanhol à Ramin, pois o personagem parece ter vontade de se aproximar mais de Guillermo, de se comunicar e diminuir as barreiras. Cada aula começa como uma aula normal, mas logo se transforma em um confessionário dos traumas e dramas que os dois passam. A diretora Bani Koushnoudi decide, definitivamente, eliminar a distância entre os dois com uma sensível cena. Nela, Ramin se encontra em uma ponta da mesa e Leti na outra, uma maneira simples e muito utilizada por diversos cineastas para expor a distância entre duas pessoas. O nosso protagonista, em um dado momento, acaba quebrando sua casca e desabando no choro. As ações da mulher, em compadecimento, são trazer um copo com álcool para esquecer a dor, por uma música e chamar Ramin para dançar. Aqui já não existe mais distância, mas sim dois personagens que enxergam na dor do outro o consolo para prosseguir. A amizade, primordial para ambos, finalmente se forma.

Nos encontros e desencontros do amor, choros e recaídas ao desejo são trazidos à tona. Ramin, em uma cena dolorosa, caminha por uma rua onde sempre vê dois meninos se beijando, em uma ardente lembrança de seu amor passado e também do sentimento que possui por Guillermo. Ao fundo da rua, um homem vem de encontro ao protagonista, o levando a uma construção vazia, solitária. Uma metáfora da própria mente de Ramin, de seu estado de espírito de ter que lidar com adeus e com fortes sentimentos que o inundam. O desejo passageiro ali é consumado. A diretora filma os dois em um plano geral, aberto, para demonstrar essa impessoalidade e caracterizar o ambiente como essa ilustração de abandono, fechando o plano sem a cena de sexo, mas apenas com essa sugestão, mostrando cortinas brancas balançando com a força do vento, a alma inquieta do humano.

Bani Koushnoudi, aliás, trabalha muito mais com essas sugestões, com os olhares, com os tempos, com o que está por baixo da mera superfície. A diretora sempre traz as mais diversas expressões e pausas de Rami e Leti, mostrando em seus olhares os seus gritos, sempre de maneira sutil, mas sem se esquivar de confrontos. Em um clímax dos mais fortes, Guillermo dá um tapa em Ramin depois de uma tentativa de beijo. Logo depois, ele vai ao apartamento do protagonista, o beija e começa a ser violento, o que termina em uma separação brutal, esmagadora. Koushnoudi parece querer apontar que é muito mais fácil fugir dos sentimentos do que os abraçar, julgar o diferente porque ele não é aceito. A atitude de Guillermo não é diferente em moralidade: do que a prender Ramin e o açoitá-lo. A mensagem continua a mesma. A prisão passa a ser psicológica, assim como os chicotes.

Nesse jogo de memórias, prisão, aceitação, abandono e preconceito, resta a noção da amizade. A conclusão, com Leti e Ramin juntos em um edifício em ruínas, ilustra bem que a amizade é o que sobra. Enfrentar esses desafios juntos, entendendo que ali é o seu lugar, é o que se precisa para prosseguir, pois fugir não mais é uma opção. É curioso que Luciérnagas feche com Ramin jogando uma moeda no mar, ação geralmente associada à realização de desejos, para logo depois mostrar uma criança mergulhando para pegar a moeda e fugindo com ela. Ironicamente, é o que vida faz conosco, nos distancia de tudo e nos priva dos desejos. Mas o que é melhor, chorar pela moeda ou tentar conseguir uma nova?

Luciérnagas é um filme primoroso abordando diversos temas de forma simples, emocional, psicológica e privilegiando as grandes atuações de seu núcleo principal, Arash Marandi (Ramin), Flor Eduarda Gurrola (Leti) e Luis Alberti (Guillermo). Um filme que grita com silêncios, que clama pela liberdade, mas que preza pela jornada dos aprisionamentos. O melhor filme da Mostra Competitiva de Longas Metragens do Cine Ceará 2019.

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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