Cine Ceará | Greta

Dia 06

Por Tiago Araújo

O texto a seguir possui spoilers. Leia por sua própria conta e risco

Greta

Greta é um filme que assombra. É tanto mórbido quanto estranho, mas exala principalmente solidão pelos poros. Nas incursões ao mundo da prostituição, sexo pelo mínimo de atenção e no travestismo como idealização de uma vida, o filme de Armando Praça desenha todos os caminhos que levam à frustração de se viver uma vida sem absolutamente ninguém por perto, abandonado pelas circunstâncias ou pela falta de amor ao seu redor.

Não por acaso, o personagem Pedro (Marco Nanini) já inicia sua trajetória levando sua melhor amiga, Daniela (Denise Weinberg) ao hospital. O plano próximo ao rosto do protagonista já nos revela uma fina camada de luz roxa sobre sua figura, a luz que representa a morte no cinema. Nesse filme em específico, não significa que Pedro vai morrer, mas que está rodeado pela morte. Logo descobrimos que o personagem é um enfermeiro, que trabalha em um hospital que mais parece com o inferno, sombrio e obscuro, com luzes verdes fracas iluminando o espaço. Além de ter uma amiga prestes a morrer, nosso protagonista também liberta pacientes em troca de sexo. Para ele, porém, o sexo não somente simboliza uma ação carnal, mas também um gesto emocional que o distancia, mesmo que momentaneamente, da solidão, do ato de ficar sozinho.

Freud diz que o ser humano busca ficar distante da solidão, custe o que custar. Analisando por esse prisma psicológico, Pedro é um personagem que vem direto da relação psicanalítica de Freud, que envolve o sexo e a solidão diretamente conectados. Sob esse aspecto, só podemos imaginar o que pode ter acontecido nas relações familiares do protagonista, que revelaram essas dores das quais ele não consegue escapar. Dá até para fazermos um exercício de imaginação: Pedro, por ser gay, sofreu muito com a homofobia desde criança, se esforçando ao máximo para ter sucesso na área acadêmica e finalmente se formar em enfermagem. O personagem mostra uma predileção pelas artes, principalmente por ser fã de Greta Garbo, projetando sua vida como a dela para se esconder de todas as desgraças que a sociedade lhe trouxe. É por isso que, no primeiro parágrafo desse texto citei o travestismo: porque o velho homem se veste como se fosse Greta Garbo, projetando psicologicamente e fisicamente sua persona, principalmente na hora do sexo, onde pede para que homens lhe chamem como a artista sueca.

Apesar de não ser o mote da trama, o preconceito parece rodear o filme em seu clima mórbido, favorecendo um peso maior para o drama de seu personagem. Já que o filme tem em muitas de suas articulações o sexo como um dos pontos centrais, aqui ele é tratado como um elemento dramático importante e liberado sem escrúpulos. Armando Praça, em uma das cenas que melhor ilustra a ligação entre o desejo e a solidão, dá um close no rosto de Pedro enquanto ele recebe um oral de outro homem em um bordel. O personagem, incorporado por um Marco Nanini incontrolável, chora copiosamente e o ato do sexo entra em segundo plano para revelar e fazer reinar a solidão.

É somente a partir da entrada de Jean (Demick Lopes), um homicida internado no hospital e libertado por Pedro, que o protagonista começa a enxergar uma possível relação amorosa, porém a ficção, assim como a vida, não é simples. Enquanto um personagem pensa somente na recompensa do amor, como se ela pudesse ser alcançada por favores, o outro pensa nas vantagens que pode conseguir e arrancar enquanto está sobre um teto. Claro que, nessa relação que vai e volta, temos aí um sentimento latente, que hora se consome e hora se esvai. Para completar esse núcleo dramático, a chance de Pedro efetivamente perder a sua amiga Daniela para uma doença é grande, o que seria um teste para ele, pois perderia a sua única conexão com o mundo.

Tudo isso é perfeitamente orquestrado pelo diretor e roteirista Armando Praça. Sua história, forte e personalista, expõe adversidades e cria um riquíssimo personagem, sempre o explorando de maneira sutil, porém próxima, carregando o expectador para a morbidez de seu universo. Seu filme se vale de uma mise-en-scène que explora a força dos planos de conjunto das relações sexuais, onde se torna evidente, poderoso, irrefreável. O cineasta parece também entender quando deve trazer algo diferente por meio da montagem e o exemplo que dou é quando, depois da última e decisiva conversa entre Pedro e Jean, Praça traz, junto de sua montadora Karen Harley, planos da Greta Garbo original, fechando com uma câmera que lentamente se aproxima de Pedro com um olhar firme e vestido como Greta, nos dizendo que você pode ser quem você quiser, tem força para isso, use-a.

Ao fim do Cine Ceará 2019, Greta levou para casa o grande prêmio da noite, o de melhor filme. Não é para menos, afinal a produção é uma prova material da força que o cinema cearense tem de resistir, de ir à luta e entregar histórias personalíssimas e que representa cada cor do nosso país. É, junto com o mexicano/iraniano Luciérnagas, o preferido deste crítico em todo o festival. Terminou com aquele belíssimo pé direito, não no chão, mas sim, no rosto de cada um dos presentes no Cine Teatro São Luiz.

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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