Na Netflix | Dois Papas

19 de dezembro de 20197 de fevereiro de 2020 Vinicius Dias 1584 Views 0 Comment Anthony Hopkins, Fernando Meirelles, Jonathan Pryce, Netflix

Em 2005, Joseph Ratzinger foi eleito Papa após a morte de João Paulo II e deu uma guinada conservadora na Igreja Católica como solução para estancar a redução do número de fiéis que vinha ocorrendo naquele período. No entanto, em 28 de fevereiro de 2013, em face de escândalos como o acobertamento de casos de pedofilia e os vazamentos de documentos sigilosos relacionados à corrupção do Vaticano com empresas italianas, renunciou ao papado sob a justificativa de que, devido à idade avançada, não estava em condições de exercer as obrigações do pontificado. Como seu sucessor, foi escolhido Jorge Bergoglio, com um projeto de remodular a Igreja redirecionando sua atenção aos mais pobres e a questões relacionadas aos direitos humanos e ao meio ambiente.

O Papa Bento XVI e o Papa Francisco não poderiam ter personalidades e visões mais díspares. O primeiro, alemão, de perfil conservador e moralista, defensor de uma doutrina Católica mais rígida e radical, principalmente em temas como homossexualidade, controle de natalidade e diálogo entre religiões; o segundo, argentino, de perfil tímido, com grande prestígio popular devido a sua vida simples, despida de ostentação, amante do tango e apaixonado por futebol (torce pelo time San Lorenzo), com uma visão moderada em relação à doutrina Católica e direcionada aos mais pobres.

Baseado na peça “The Pope” de Anthony McCarten (que também assina o roteiro), Dois Papas é dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles (de Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira) e tem como objetivo humanizar as duas figuras, não poupando-os de seus erros do passado e arrependimentos ao colocá-los frente a frente por meio de um encontro fictício para falar sobre diálogo, culpa, perdão, individualismo e as consequências que a indiferença tem causado no mundo.

O trabalho feito por Jonathan Pryce como Papa Francisco e Anthony Hopkins na pele de Bento XVI é excepcional. A química entre os dois em cena está presente tanto nos embates em tela devido às diferenças de opinião e visão dos personagens, assim como também nos momentos mais engraçados (sim, a dupla tem um excelente timing cômico), íntimos e tocantes. Enquanto Pryce nos presenteia com uma atuação marcada pelo carisma, naturalidade, simpatia e emoção, Hopkins se apresenta como uma figura solitária, isolada, séria, conservadora e debilitada. Duas interpretações magnéticas e irresistíveis que podem (e merecem) aparecer na temporada de premiações.

Após o péssimo 360, Meirelles finalmente volta à forma e apresenta seu melhor trabalho em anos. Sua câmera é intimista no sentido de filmar com muita naturalidade os diálogos e a relação de seus protagonistas, ao mesmo tempo em que, às vezes, soa velada, como se estivesse invadindo aquele universo repleto de segredos e não pudesse ser descoberta.

O uso de flashbacks na trama, primeiro em preto e branco para representar lembranças de um passado já superado, pré-celibato e, em seguida, colorido para simbolizar as memórias carregadas de culpa e remorso jamais superadas — ainda que não estimulem o mesmo interesse do espectador como nas cenas que envolvem diretamente seus protagonistas, auxiliando na humanização de um deles, já que é um aspecto essencial para mostrar quem ele é por trás da figura papal.

Em um mundo que está mais interessado em construir muros ao invés de pontes, Dois Papas é uma ode ao diálogo e um pedido para que paremos de olhar para nós mesmos e deixemos a indiferença de lado, passando a enxergar os reais problemas do mundo. As diferenças devem ser superadas para que o perdão e a misericórdia nos guiem. Todos erram e acertam, o que nos torna imperfeitos, logo, humanos.

Não podemos fechar os olhos e fingir que não temos nada a ver com o que está acontecendo a nossa volta. Afinal, quando a culpa não é de ninguém, ela é de todo mundo.